domingo, 6 de fevereiro de 2011

Ascese e totalidade: a "Arte Poética" de Sophia

Pintura de William Turner
Tudo começa com o olhar e o fascínio da luz sobre as coisas: formas e cromatismos. Jogos de luz e sombras escassas: "O sol é pesado e a luz leve". A sombra pode também ser água. As formas das coisas estruturam-se em função de arquitecturas imaginárias onde os sentidos se projectam e respiram. O poeta caminhante deixa-se impregnar por imagens matriciais onde ecoa a dimensão apolínea de Creta. A ânfora, forma imemorial, transporta consigo um antiquíssimo saber artesanal, isomorfo do fazer artesanal do poeta. O barro trabalhado pelas mãos é uma fusão da terra, da água e da luz. Um sinal da criação, liberto do tempo corruptor.
A poesia é ("Arte Poética I"), primeiro que tudo, uma arte do olhar e, purificados os olhos, talvez pela aprendizagem de uma poética moderna da ascese, transforma-se em algo capaz de apreender a iluminação das coisas, como se as disséssemos na evidência quase insuportável da sua beleza encantatória. As imagens, os sons, os odores e o tacto da terra são a matéria-prima de onde emana a palavra poética - cal, mar, pedras polidas, oregãos, tílias... Daí que o poema não fale "duma vida ideal mas sim duma vida concreta" ("Arte Poética II"), tão concreta como a cal ou a ânfora, um símbolo exemplar. A poesia é também, por outro lado, um modo especial de religião, uma aspiração a uma ordem euforizante (religião no seu sentido etimológico: religio, religare).
Como a ânfora, sol e terra divinizados (Ísis e Deméter), funde o material e o espiritual. Aqui conjugam-se o olhar, o gesto escultural e a dicção do desejo de unidade. O poema, num primeiro momento, captação de um fragmento, constrói-se posteriormente em função da unidade, da aliança e do reino: unir o que está separado, numa síntese entre o objectivo e o subjectivo. As fronteiras diluem-se entre o exterior e o interior, o descendente e o ascendente, o que olha e o que é olhado, o que diz e o que é dito. Reino imaginário e real onde se capta, ora em zonas de luz ora de penumbra, a magia do universo. É a antítese do "habitat", território da fragmentação, corpo de Orfeu despedaçado pelas "fúrias" - o espaço da divisão.

Pintura de William Turner

Cada palavra de um poema contém, simultaneamente, o peso do sol e a leveza da luz; uma descida e uma ascese. O compromisso do poeta com as coisas implica, para lá da artesania das palavras, a projecção do seu ser total. Na cal da página, outra forma de sol, inscrevem-se os signos como uma fértil penumbra. Uma túnica contra o tempo corruptor.
A poesia em prosa ("Arte Poética I/V") de Sophia de Mello Breyner Andresen "diz-se" a pensar-se, o que parece excluir ou, pelo menos, menorizar uma teoria literária enquanto metalinguagem do discurso poético. Nestes textos, a reflexão sobre a génese do acto poético é inseparável da própria criação. Como num espelho, a poesia vê-se a criar e esta distância é a condição da possibilidade de apreensão da essência do gesto poético. Neste aspecto, todo o discurso sobre a poesia será ainda poesia ou, dito de outro modo, só através da poesia podemos falar da poesia. Com a poesia aprendemos a conviver com o universo e a participar no real com toda a pureza ("inteireza") do ser. De novo, a ambição da totalidade.
Há, nos seus textos, a expressão de uma sede de real, sob a configuração de um círculo mágico. Há, por isso, uma justiça imanente às coisas e ao poema, ou melhor, às coisas ditas pelo poema, que participa da sua estrutural harmonia. A ética das formas é também uma ética social: uma homologia entre o desejo de perfeição formal e a expectativa de uma perfeição social. Não há, no entanto, imposições possíveis vindas do exterior. A moral do poema é apenas induzida pela sua própria dicção. E aí pode desenvolver-se o sentido da revolta (Antígona) ou o da utopia. O poeta está do mesmo modo contra a desordem das formas e a desordem (injustiça) social. O artista não é uma "ilha". Estabelece inevitavelmente laços com as coisas e os homens, mesmo quando o isolamento é a postura mais apropriada para o acto criativo. A busca da dignidade da forma implica a procura da dignidade do ser, ou seja, de uma sociedade mais justa, mais adequada também ao exercício público da actividade estética.

Pintura de Júlio Pomar

O poeta é um "escutador" ("Sei que o poema aparece, emerge e é escutado..."), para além de vidente e artesão. Enquanto "escutador", numa cadência óbvia, ao poeta exige-se "atenção, tensão e concentração". Fazer poesia é lutar com as palavras de molde a centrar as que mais rigorosamente exprimam a nossa relação com as coisas; é fazer delas uma música interior que, no entanto, parece estar para além do sujeito. E aí, este parece anular-se ante a teia que está na génese do texto. Agente e objecto, o poeta é um arquitecto que procura atingir a ordem intrínseca a partir "duma sucessão incoerente de versos e imagens". De qualquer modo, é sempre um acto de paixão.
O poema diz-se então como uma respiração do universo. Mas, por vezes, a página branca, um palco metaforicamente vazio, exige a plenitude do gesto da bailarina. Ou então, há uma história antes do poema, um "leitmotiv". O gesto poético não se resume, pois, a uma escrita passiva, a uma evidência, já que a escrita implica dar ordem ao caos das vozes interiores. No fundo, a questão está em saber quem fala e quem escuta ou saber qual a fonte do desejo do poeta "escutador". O poema seria, paradoxalmente, a voz do outro que nele fala ou, dito de outro modo, a sua própria voz sentida ou escutada como alteridade. Daí o vazio e a despersonalização que a cenografia poética pode comportar ou a tensão permanente com a voz que simultaneamente está nele e dele se afastou definitivamente. A poesia é, em suma, uma doação plena do ser para um diálogo com o universo.




1 comentário:

  1. Olá! Boa tarde!
    Parabéns pelo seu texto!
    Há algum tempo copiei o texto Arte Poética II, do livro Obra Poética III. Vc por acaso teria o livro? Estou precisando citar, e me falta o número da página em que se encontra o texto... vc poderia me ajudar?
    desde já agradeço

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