sexta-feira, 4 de março de 2011

A Crise das Democracias e as Rebeliões no Mundo Islâmico

Pintura de Célia Pena
Fui militantemente contra a guerra no Iraque, com todos aqueles que desde logo perceberam os embustes toscos do Sr. Bush. Primeiro, para justificar a invasão, as armas de destruição massiva em território iraquiano (uma invenção da “diplomacia” americana). Depois, demonstrada no terreno a inexistência de tal armamento, para justificar as centenas de milhares de mortos e de dólares com tal cruzada, despontou a necessidade estratégica de destruir a feroz ditadura de Hussein e dos seus presumíveis comparsas da Al-Qaeda.
A ditadura caiu, mas o terrorismo islâmico não esmoreceu com tal empresa, pelo contrário, parece ter-se revitalizado. Quanto à democracia iraquiana é por enquanto apenas uma farsa trágica. O Sr. Bush, certamente iluminado pela tradição do western, de Bom da fita passou irremediavelmente a Vilão, atraiçoado pelo guião do argumentista. O Iraque foi, para a administração americana, um bode expiatório relativamente aos atentados terroristas do 11 de Setembro, um exorcismo mediaticamente espectacular.
A democracia é historicamente, nas suas várias versões, uma conquista da luta dos povos, não se impõe com invasões. Aliás, o logro imbecil de certos iluminados ocidentais está na convicção de que é possível exportar o modelo sociopolítico euro-americano, sem ter sequer em conta a diversidade cultural e histórica dos povos. Houve até entre nós uma narrativa patética, exemplar desse “humanismo” autista, da autoria de um afamado director de um jornal diário, segundo a qual as imagens televisivas do derrube das estátuas do ditador iraquiano por umas dezenas de opositores, bem resguardados pelos tanques americanos, comungaram, nesse instante, em lágrimas sinceras com as da memória do nosso 25 de Abril.
Otto Griebel - A Internacional (1930)
Ora as nossas democracias com as suas especificidades nacionais têm uma longa história e muitos sobressaltos na sua caminhada, e uma matriz comum, estruturada pelos novos valores que, desde finais do séc. XVIII, emergiram com  a Revolução Americana e com a Revolução Francesa, e, durante os séculos XIX e XX, com os movimentos laborais de natureza política e sindical, ou, num outro plano, com as movimentações reivindicativas das mulheres.
As recentes rebeliões de massas que, com uma turbulência inesperada, têm eclodido nos países árabes, desde o Magrebe ao Médio Oriente, contra as autocracias dominantes, criam muitas expectativas no mundo ocidental. Para alguns “fazedores de opinião”, essa movimentação popular irá convictamente em direcção a uma formatação democrática à maneira ocidental, nos planos económico-social  e político. Para outros, os habituais defensores de uma ordem mundial baseada na aliança entre o ocidente e poderes estáveis no mundo árabe, mesmo sendo ditaduras com décadas de existência, pragmáticos para quem os valores do petróleo estão muito acima dos valores das ideologias, estas alterações poderão  apenas conduzir ao caos ou à formação de regimes fundamentalistas de pendor “teocrático”, adversários confessos dos valores e interesses geo-estratégicos ocidentais.
Por outro lado, convém lembrar que as diferentes matrizes religiosas  (cristianismo e islamismo) estruturam diversamente o universo das representações colectivas, com implicações óbvias nas vivências quotidianas e nas relações sociopolíticas tanto no ocidente como no mundo islâmico. À secularização da vida política, na esfera ocidental, cuja  génese está no campo teórico do Século das Luzes (séc. XVIII), opõe-se, no mundo islâmico, embora com algumas excepções, uma simbiose entre a prática política e os rituais religiosos. Diríamos, por outro lado, que enquanto no ocidente os valores individuais, pelo menos no plano teórico, são dominantes relativamente aos da comunidade, pelo contrário,  nos países árabes o sentido da comunidade sobrepõe-se aos direitos individuais. Mas num mundo globalizado não se tenderá para uma homogeneização dos regimes políticos, apesar das diversidades socioculturais dos povos e das nações? Se tal vier a acontecer, tanto o fundamentalismo islâmico como o cristão seriam fragilizados, em função de uma ainda utópica democracia universal, fundada no desejável diálogo entre civilizações.
Mas, neste interregno de desejos, o que poderá acontecer nos países islâmicos? Países demograficamente jovens, em oposição ao crescente envelhecimento da população ocidental, tal facto constituirá certamente uma vantagem para o futuro dessas comunidades. Mas para acentuar as contradições, sabemos que entre as causas da explosão social, nas nações árabes do Magrebe, para lá da revolta contra ditaduras de décadas, está o desemprego massivo de jovens que se vêem compelidos a uma migração clandestina para países mediterrânicos como a Espanha ou a Itália, em busca do Eldorado.
Neste desconcerto do mundo, estarão as nossas democracias de boa saúde? Serão um modelo a adoptar pelas sociedades “subdesenvolvidas”?
No que diz respeito à experiência nacional de vida democrática, sobressai um óbvio défice de cidadania: fraca participação dos cidadãos na vida política; desprestígio dos Partidos; uma Justiça morosa e ineficaz; o maior índice de desigualdade económico-social a nível da União Europeia; consumo cultural elitista; ausência de uma estratégia consistente e dialogada de crescimento económico, uma taxa galopante de desemprego, etc. Enfim, uma democracia à deriva que, por isso, se tornou presa fácil dos centros financeiros internacionais, ou seja, de muitos dos especuladores que estiveram na génese da crise económica de 2008-2009. Mas,  numa outra escala, notemos este olhar singular sobre a actual estrutura da democracia americana. 
No Jornal i (25-2-2011), o cronista do New York Times Paul Krugman, a propósito da crise americana, tece as seguintes reflexões sobre o estado da democracia do seu país: «Em teoria, somos um país em que uma pessoa conta um voto; na realidade, somos uma espécie de oligarquia dominada por meia dúzia de pessoas muito ricas. Dada esta realidade, é importante que haja instituições que possam agir como contrapeso do grande poder financeiro. Os sindicatos estão entre as principais destas instituições.»
Ora, também em Portugal, os sindicatos, apesar de algum conservadorismo estratégico, têm sido uma poderosa oposição às crescentes investidas “neo-liberais” (o rosto ideológico do capital financeiro), contra o Estado Social e a legislação laboral, protectora dos direitos dos trabalhadores. Os nossos “neo-liberais”, certamente leitores atentos dos manifestos do movimento americano Tea Party (a mais conservadora oposição à liderança Obama, que em nome da liberdade endeusa o mercado como um sagrado valor patriótico, contra as medidas “socialistas” do presidente americano), sustentam as suas teses no quadro terapêutico da nossa crise financeira. Mas sigamos de novo Paul Krugman: «De facto, ao longo dos últimos 30 anos os Estados Unidos caminham claramente num sentido favorável à oligarquia e contrário à democracia, e uma das principais razões é precisamente o declínio dos sindicatos do sector privado.»
Ora, na história da democracia ocidental, os sindicatos funcionaram quase sempre como um contra-poder. Foram um factor indispensável da plurivocalidade democrática, sem a qual este modelo político se transforma num embuste. E quanto à crise financeira, lembra ainda o articulista: «Afinal foram os ultra-ricos, e não os cidadãos comuns, que estiveram por trás da desregulação financeira, e portanto foram eles que montaram o cenário em que decorreu a crise económica de 2008-2009».
O mundo está a mudar. No islâmico, o futuro é ainda uma incógnita, e além disso os negócios do petróleo podem baralhar as estratégias. De uma coisa estamos certos, os ditadores derrubados pela vontade dos povos não deixarão saudades, a não ser aos políticos ocidentais que, durante décadas, com eles foram coniventes. Quanto às democracias ocidentais, é urgente reformá-las.
Sem cidadãos não há democracia, e o mercado não gera uma ética. Cabe aos estados democráticos regulá-lo de acordo com os interesses globais das comunidades. E, entre nós, estejamos atentos aos arautos da versão portuguesa do «Partido do Chá» (o nosso Tea Party).
Desempregados do nosso país, juntai-vos e lutai, mas não vos deixeis embalar pelas toadas daqueles que querem destruir o Estado Social que, apesar das suas fragilidades, foi o que de mais significativo, a par da liberdade, se construiu no plano democrático, durante os 37 anos sequentes ao 25 de Abril. Por outro lado, o laxismo a nível da legislação laboral, como modo imediato de criar mais empregos, como alguns defendem, não será mais do que uma regressão no que concerne aos direitos elementares dos trabalhadores. A nossa democracia está em crise. É preciso e urgente refundá-la, mas para isso precisamos de cidadãos e não de escravos.

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