terça-feira, 8 de março de 2011

Dia da Mulher - Evocando Luísa Neto Jorge

Luísa Neto Jorge
Os dias de qualquer coisa fazem parte das ritualísticas convenções do nosso tempo, como se ritmassem as pulsões da nossa memória em trânsito permanente. O dia 8 de Março é o Dia da Mulher. Na origem as manifestações das oprimidas operárias têxteis em Nova Iorque (1857). Hoje mediaticamente mais pretexto para o consumo do que para evocar o simbolismo da luta daquelas mulheres.
Cronologias institucionais à parte, a efeméride serve-me para dar a palavra à poeta Luísa Neto Jorge, uma companheira longínqua do meu curto exílio parisiense na década de 60. Rosto a diluir-se nos fumos do tempo, resta-me a tua voz poética para te reconfigurar aqui e agora.

Pintura de Magritte
objecto propagado ao mar

A mulher de areia
conduziu no vento
os grãos do corpo

rios a fazem e trazem

garfos a possuem
escorrem nos dentes
seus olhos de lâmpada

Mulher íntima
máquina mão detida
objecto propagado ao mar







Detalhe de mural de Klimt
metamorfose

Quando a mulher
se transformou cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde
equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz constante
das árvores
ao grande silêncio empastado
nas letras de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem gritos
das notas de música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
Cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
voltar mulher
- ressurreição)

Poemas de Terra Imóvel (1964)

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