quarta-feira, 23 de março de 2011

O Sono, os Sonhos e os Pesadelos

Puvis de Chavannes - O Sonho (1883)
Na mitologia grega, Hipno é a personificação do sono. É um ser alado, ora águia ora borboleta, com parentescos suspeitos – filho da Noite e irmão gémeo de Tânato (a morte). Mas esta má fama não retirou ao objecto personificado uma justa consagração nos nossos dias. Quanto à noite, teremos de referir que hoje os seus verdadeiros filhos são os noctívagos, os ternos amantes da noite, e estes dormem sobretudo de dia, pois como os vampiros não suportam os raios solares. Quanto à morte, nada mais distante, pois não suporta o povoamento dos sonhos tal como acontece na paisagem sonífera, onde  as asas do sono nos permitem viajar sobre os campos e as cidades, vôos sublimes que nos fazem esquecer o peso da culpa dos nossos corpos, embora, por vezes, como Ícaro, nos aproximemos tão incautamente da luz do sol que as asas dos desejos se derretem e caiamos abruptamente nas profundidades do mar.
Apenas os pesadelos nos podem sugerir aquele parentesco letal, como uma tatuagem no nosso inconsciente colectivo. Mas o pesadelo é ainda uma forma de vida, mesmo que a torne insuportável ou temível. É um filão temático bem utilizado pelo cinema de terror, no qual as personagens lutam para não adormecer, único modo de não serem possuídas por esses demónios da noite. E, no ambivalente prazer dos medos, o espectador consome-se nesses devaneios fantásticos como um verdadeiro acto de catarse. Depois, poderá dormir na paz dos anjos até que um demoníaco despertador o arranca de supetão desse paraíso que julgava definitivo.
Há também quem durma acordado, vagabundos do sono,  distraídos dos perigos e adversidades do quotidiano. Nestes o sono é uma doença e não uma virtude. Há ainda a doença do sono, picadelas da africana mosca tsé tsé (nome bélico como convém a tal cenografia)  enviada à terra por Hipno ou pelo seu filho Morfeu, quando entediados se divertem malevolamente com os humanos. Estes actores mitológicos não distinguem o bem do mal, a sua única função é tanto fantasiar a nossa vida, como maltratá-la. Os desígnios destes deuses são insondáveis, ainda que, neste caso, as suas malfeitorias pudessem ser contrariadas, bastava que, nos países ricos, houvesse vontade política para acabar com esta endemia africana.
Van Gogh - A Sesta (1890)
Durante o sono dos mortais, acontece muitas vezes estes deuses disfarçarem-se de seres humanos e provocarem nos dormentes perversas cenas eróticas, aparentemente tão reais que maculam os lençóis brancos com as sombras dos desejos interditos ou insatisfeitos. Estamos na fronteira entre a fantasia onírica e o real.
Há também quem não dispense uma boa sesta, sobretudo nos países mediterrânicos, quando o calor aperta e o estômago pesado, após o almoço, exige uma pausa na labuta diária. Sesta, que vem de sexta hora, era tradicional nos trabalhos agrícolas dos campos do sul, quando se trabalhava do nascer do sol até ao crepúsculo, memória ritualística que Van Gogh tão magistralmente fixou na tela (A sesta, 1890). A moda rural da sesta migrou para os meios urbanos, sobretudo para aqueles que têm tempo e teres para o fazer.
Füssli - O Pesadelo (1790)
Mas a sociedade moderna vive também sob o signo da insónia: novos e velhos, sobressaltados pelas angústias do quotidiano, submetem-se ao império farmacêutico dos dormitivos, uma indústria em florescimento crescente. Os mais velhos temem certamente que, na distracção da dormência, o sempre astuto Tânato se aproveite cobardemente da situação e os transporte para o reino de Hades. Já os mais novos, massacrados pelo inferno em vida (obter emprego, pagar as prestações do carro e da casa, as propinas dos filhos, aturar as impertinências do chefe ou do cônjugue, evitar a falência da empresa, seduzir o homem ou a mulher da sua vida, sair de uma relação erótica apodrecida, etc.), não conseguem pregar olho sem a ajuda de uma erva dormideira que Hipno transporta em abundância para hospitaleiramente servir todos os pedidos. Claro que esta nossa vida sedentária muito colabora para este estado geral de insónia. Se fôssemos nómadas, como os nossos longínquos antepassados, com tanta corrida apressada, chegados ao sol posto, adormecíamos como anjos nos lençóis do paraíso.
Mas, benévolos leitores, agora reparo que, com este longo arrazoado, começais a cair nos braços de Morfeu. Chegou a hora de terminar, vou aproveitar eu próprio para me restabelecer com uma sesta em homenagem ao dia mundial do sono, sem narcóticos de preferência.


Sem comentários:

Enviar um comentário