sábado, 14 de maio de 2011

Do Declínio à Reinvenção de uma Nova Ruralidade (2)

Célia Pena Alves - Mulher curvada
A partir da segunda metade do século passado, o mundo rural foi-se desertificando, com a migração das populações rurais do interior para a zona litoral do país ou para o estrangeiro, em busca de melhores condições de vida, já que a terra em vez de mãe fora-se tornando madrasta. Com a migração camponesa e o abandono da pastorícia vieram os fogos florestais, resultado da ausência de ordenamento da floresta e da opção pelas manchas de resinosas e eucaliptos em zonas quentes, matéria-prima das fábricas de celulose, eliminando-se a biodiversidade ou a prevenção que pressupõe a limpeza regular das matas e a abertura de corta-fogos.
Calcula-se que hoje dois terços da população portuguesa viva na faixa litoral, entre Viana do Castelo e Setúbal, sendo as Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto aquelas que atraem a maioria da população migrante, uma tendência que apenas é nova no plano da quantificação, já que a macrocefalia portuguesa é fenómeno com séculos. Lisboa tem sido ao longo da nossa História, sobretudo a partir do séc. XVI, o centro político, administrativo e económico do país. Faltam-nos cidades intermédias com determinada dimensão económico-social, embora a instalação de pólos universitários ou politécnicos em capitais de distrito tenha sido aí um factor de dinamização cultural. Por outro lado, entre 1960 e 1974, calcula-se que teriam emigrado, sobretudo para a Europa, um milhão e meio de portugueses, na sua grande maioria dos meios rurais, o que também contribuiu para uma profunda alteração estrutural do Interior e da sua paisagem, com o abandono da agricultura, sobretudo a familiar, e a progressiva degradação arquitectónica das nossas aldeias. Os emigrantes da primeira geração quando regressavam à sua terra natal tendiam, como forma de ruptura com o passado, a construir inóspitos casarões sem qualquer relação com a tradição, algo que se foi alterando com a segunda e terceira gerações que, com uma nova mentalidade, começaram já, em algumas regiões, a reconstruir as velhas casas familiares seguindo a traça tradicional. Mas, em muitos casos, a degradação foi irreversível, pois muitos emigrantes da primeira geração acabaram por se fixar definitivamente no estrangeiro, e por aí ficaram essas monstruosidades em betão em processo acelerado de decomposição. O concelho de Trancoso, por exemplo, em 1960, tinha 18.224 habitantes, enquanto, em 2004, este número descera para 10.639. Notando-se, por outro lado, um envelhecimento progressivo da população e a manutenção de índices de analfabetismo elevados. Em 2001, a sua taxa era de 17.9. Quanto ao número de desempregados seria, no mesmo ano, de 213.
Célia Pena Alves - À esquina
A oposição Litoral/Interior foi-se, pois, acentuando até aos nossos dias, apesar das novas rodovias que viriam aparentemente facilitar as acessibilidades entre as duas polaridades geográficas. Porém, “A orientação actual das auto-estradas e das principais vias de comunicação, polarizada pelas maiores cidades, e sobretudo por Lisboa, só vem agravar as dificuldades de estruturação à escala da província. Para quem tenha de utilizar os transportes públicos e não possa percorrer as vias transversais de automóvel, é geralmente mais difícil comunicar entre regiões relativamente próximas do que chegar a Lisboa.” (Portugal – O Sabor da Terra, de José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo - p. 339). Esta aposta num planeamento rodoviário que desprezou o melhoramento das estradas secundárias, e o pouco investimento nas linhas de caminho de ferro ou o abandono de outras foram factores que em nada beneficiaram o Interior, enquanto se promovia a construção de duas auto-estradas paralelas entre Lisboa e o Porto.
 O envelhecimento demográfico, as alterações nas práticas agrícolas decorrentes de novos modos de produção após a nossa entrada na actual União Europeia, com negociações que prejudicaram substancialmente a nossa pequena e média agricultura, vieram acentuar os fenómenos de desertificação do Interior, devendo-se ter ainda em linha de conta o fecho recente de escolas, de transportes públicos, de postos de correio, de serviços de saúde etc., numa galopante centralização, justificado, no entanto, por razões operatórias e economicistas.
O Eldorado urbano, há décadas, um mercado de trabalho apetecível, tornar-se-ia um lugar de eleição para todos aqueles que no mundo rural não tinham grandes horizontes de expectativa. Os subúrbios de Lisboa e do Porto cresceram então caoticamente, sem qualquer critério de ordenamento do território. A qualidade de vida nos grandes meios urbanos foi-se deteriorando nas últimas décadas, acentuando-se o stress quotidiano em caóticos engarrafamentos entre a habitação e o local de trabalho, com transportes públicos deficientes, obrigando à irracional utilização do automóvel A poluição, a quase ausência de espaços verdes convenientemente tratados, a insegurança nas ruas, o caos urbanístico, as horas diárias perdidas entre a morada e o trabalho, tornaram a vida nos subúrbios de Lisboa um autêntico inferno quotidiano. Entretanto o centro de Lisboa foi-se desertificando, pois a cidade foi perdendo habitantes a favor dos subúrbios, onde as casas eram muito mais baratas. As vantagens de viver numa metrópole, por exemplo nos planos hospitalar, da oportunidade de emprego ou da oferta cultural, entre outros, convivem, portanto, com uma existência quotidiana com pouco tempo para cada um usufruir a vida com plenitude. Aliás, os casos de solidão de idosos tornaram-se um verdadeiro problema social, mais grave do que no mundo rural, já que os idosos no campo estão mais inseridos na comunidade, onde ainda funciona a sociedade-providência com a inter-ajuda entre vizinhos, são mais activos e autónomos e não sofrem do medo inerente à insegurança das ruas dos subúrbios citadinos.
Célia Pena Alves - No adro, todos os dias
Muitos dos que abandonaram as suas terras de origem regressariam certamente, caso houvesse oportunidades no plano empresarial. Talvez a actual crise económico-social possa contribuir para uma progressiva alteração da tendência migratória para as metrópoles, desde que se criem modos de vida alternativos no mundo rural, o que pressupõe uma alteração do paradigma cultural, implicando sobretudo a reabilitação económico-social da actividade agrícola e a dinamização do turismo de natureza. Os 700.000 desempregados, localizados sobretudo nas grandes urbes, ou mantêm um ciclo emigratório para o estrangeiro, embora as condições actuais sejam adversas devido à crise internacional, ou terão de repensar o seu modo de inserção no tecido económico-social. Alguns certamente poderiam regressar às suas terras de origem, desde que aí encontrassem trabalho, seja em actividades tradicionais, entretanto desprezadas como a agricultura, seja no aproveitamento das potencialidades paisagísticas (naturais ou monumentais), gastronómicas ou artesanais das suas zonas de origem. O mundo rural pode ser uma alternativa em tempos de crise para desempregados e pensionistas com reformas reduzidas, como já está a acontecer na Grécia. Entre nós, poderia, portanto, também ser uma solução viável para todos aqueles que, sem actuais perspectivas de emprego ou simplesmente fatigados com o desgaste da vida citadina, aí encontrassem um novo rumo para as suas existências.
No que concerne à agricultura, sector que urge revitalizar em novos moldes, é, com imaginação e uma adequada articulação entre as culturas e a morfologia dos solos ou as condições climatéricas, uma área económica que pode ressurgir e interessar muitos dos nossos actuais desempregados, sobretudo nos domínios da fruticultura e da horticultura. O país não pode continuar a importar mais de dois terços dos produtos alimentares que consome. Há, por exemplo, que investir também na agricultura biológica ou em áreas específicas como a produção de ervas aromáticas condimentares e nas plantas silvestres alimentares ou medicinais ou mesmo na produção de plantas decorativas. (cont.)

1 comentário:

  1. Excelente análise, que só peca pela dificuldade cada vez maior de sobrevivência neste Interior profundo...O regresso populacional anunciado não se vislumbra ainda, mas sim o exodo, para o estrangeiro,principalmente. E Interior desertificado, a falta de espírito crítico e os constrangimentos das mentalidades, tenho dúvidas que se alterem em tempo útil... Talvez os meus filhos(ou netos) voltem a tentar!!!

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