sábado, 18 de junho de 2011

Praias há muitas ou como litoralizar o Interior


No dia 10 de Junho, que já foi o "Dia da Raça" e agora é apenas de Portugal, enquanto durar, o Senhor Presidente da República, num discurso arguto e "inovador", alertou-nos para o facto trágico de os portugueses estarem todos comprimidos no litoral, como mexilhões na rocha, enquanto no Interior cresce paulatinamente o deserto. É pois urgente repovoar o interior e até regressar à agricultura. Disse isto, com a inocência própria de alguém que tendo sido primeiro-ministro durante uma década (1985-1995) nada fez para alterar tal assimetria. Ou mesmo pior, com os famosos acordos da chamada PAC muito contribuiu para a destruição da já débil agricultura portuguesa. Mas perdoemos-lhe, pois os políticos não sabem o que dizem, ou melhor, dizem apenas o que convém ao sabor das circunstâncias.
Entrámos então no reinado do betão que durou até ao presente, ou seja, à "bancarrota". Mas felizmente há, entre nós, capitalistas (perdão, empreendedores) que sabem reagir prontamente e com originalidade aos apelos dos nosso dirigentes. E então proliferaram projectos agrícolas por esses campos fora como flores silvestres na Primavera. Puro engano!
Em Mangualde, simpática urbe que dista 100km da costa atlântica, surgiu um projecto de espantar, tal como já, aliás, foi reconhecido em quase todos os países europeus com um profundo interior. Assim, inspirado em Maomé, já que os portugueses não vão para o interior, nem à voz de um Pol Pot, o célebre ditador que compulsivamente expulsou os cambojanos das cidades e os instalou no campo, algo obviamente impossível na democracia portuguesa, façamos o milagre de trazer o mar e a praia para os campos do interior. E aí temos em Mangualde a "Live Beach", em inglês,como é de bom tom, para assim atrair os turistas e fazer concorrência ao "Allgarve", pois como afirmou o sábio presidente da autarquia "o espaço marca de forma definitiva o concelho na área do turismo". "Live Beach", a praia-cenário, que, como a marca indica, será certamente mais viva e com mais vida do que as praias naturais da nossa costa atlântica. O marketing tem um poder imenso, até o de inventar a natureza, onde não faltam as palmeiras tropicais, tão próprias da costa atlântica.
A tarefa parecia à partida impossível, mas também a construção do Convento de Mafra o parecia, não fosse a vontade de D. João V (convém reler o Memorial do Convento, de Saramago). Ora o milagre da "Live It Well", um empreendorismo lusitano exemplar, converteu o sonho em pura realidade. Numa fusão retórica entre o campo e o mar, pode ler-se em letras gigantescas num cartaz à entrada da inventiva praia: "Que bem que se está na praia aqui no campo". Aí está um modo criativo de fundar um novo bucolismo à portuguesa, o que é preciso é ensinar as ovelhas a nadar para o cenário ser perfeito.
A área de 22.500m2, propriedade da autarquia e em estado de abandono (estranha-se que nunca se tenha lembrado de destinar o terreno para a prática agrícola), foi cedida gratuitamente e ocupada com 10.000m2 de areia e um espelho de água em forma de lua (não sabemos se cheia ou quarto crescente e se previram algum eclipse), com 300m2 e 1,5m de profundidade (um modo de poupar nos nadadores-salvadores), e, ao fundo, um painel de um azul intenso, com algumas nuvens para criar mais verosimilhança, a simular a linha do horizonte marítimo, isto é, um verdadeiro simulacro do infinito, embora, na verdade, esta fantasia contrastre com o horizonte real. Mas para sonhadores o que conta é o jogo da ilusão.
Há apenas um percalço para quem provincianamente tinha a expectativa de ver o mar real. De facto, esta "piscina olímpica" não tem ondas, cabe a cada um dos utentes imaginá-las. Depois este cenário de encher o olho é feito com 15.000 euros de sal, 20 kg de cloro, para inventar o mar, e 6,5 toneladas de areia para inventar a praia. Este acontecimento tem já um tal relevo na cultura portuguesa que os nossos linguistas já estão a pensar inventar um neologismo do tipo "mangualdizar", ou seja, transformar o sonho da litoralização do interior numa realidade. As palavras têm muita força e o nosso léxico ficará mais rico.
A entrada é triunfal com uma longa passadeira: um corredor vermelho, certamente inspirado na festiva entrega de prémios em Hollywood, ladeado por tendas que negoceiam bugigangas coloridas made in China. Aí sentimo-nos epicamente heróis desta odisseia, tal como Ulisses navegando para Ítaca, neste caso, um enorme palco ao fundo para concertos (o Tony Carreira será o primeiro a celebrar o evento, numa verdadeira dimensão popular).
Tudo isto aos pés da Serra de Nossa Senhora do Castelo com a sua ermida, que a Senhora nos perdoe, ou melhor, lhes perdoe! Ah! É verdade, há ainda "tasquinhas" abertas até às 4 da manhã (nos dias úteis) e às 6 da manhã aos fins-de-semana. As libações que necessariamente ritualizam esta festa da ilusão. E se espera entrar de borla neste Éden à beira-mar plantado, cuide-se, pois a entrada custa 5 euros por pessoa.
Vendedores de ilusões como estes precisam-se, já que os políticos já nem isso podem fazer, pois o barco está a afundar-se.

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