sábado, 31 de dezembro de 2011

O Tempo é um Rio sem Margens

Chagall - O tempo é um rio sem margens (1930-39)

 
 
  Ano novo, vida nova. No percurso da nossa finitude dominado pelo tempo vectorial, para atenuar a imagem do nosso inexorável fim, fomos inventando os rituais do tempo cíclico, específico das Estações, das fases da lua ou da sucessão dos anos, neste caso, imaginando que a renovação do mundo velho incorporado no simbólico ano que termina pressupõe a encenação do caos. Ordem velha, caos e nova ordem. Por isso no trânsito entre o ano que termina e o que começa o esplendor do ruído simula simultaneamente a festa da ruptura imaginária e a efémera desordem inerente a um ritual de passagem. Antigamente, até onde a minha memória alcança, nos bairros populares de Lisboa era costume deitar para a rua os trastes velhos, como se com eles deitássemos borda fora o tempo velho. Hoje mais artificiosos, ao ritmo da festa dos fogos de artifício, do borbulhar do champanhe ou espumante, consoante as bolsas, e da gritaria, clamamos os desejos para o novo ano, comendo, segundo a nossa tradição, as doze mágicas passas. Mas, como “o mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa), que seria de nós sem estas formas ardilosas de ludibriar o tempo “real”? Se não fosse a fantasia colectiva seríamos meras máquinas racionais subjugadas aos imperativos de Cronos. As ficções que criamos são a verdade da nossa mentira. É um jogo, no teatro da vida. O outro tempo é um mistério e a consciência angustiada da nossa finitude, mas ninguém pode viver permanentemente no fio da navalha, por isso criámos os tempos que tanto regulam a vida social, como nos libertam provisoriamente das imagens angustiadas do fim, de cada um de nós ou do universo de valores em que podemos dizer eu ou nós. Por isso cada civilização tem o seu modo próprio de contar o tempo de acordo com os seus paradigmas mitológicos. A passagem de ano é pois um tempo de festa, embora nem todos a possam viver como tal, nas ruas, no turbilhão dos corpos, na intimidade da casa entre amigos, ou nos comerciais “réveillons”  dos hotéis, fábricas de produzir euforia. O tempo é um rio sem margens, estas são uma construção da nossa imaginação.

Um Bom Ano para todos!



1 comentário:

  1. Obrigado Vítor, por esta reflexão em princípio deste ano que começa; leio envolvido pela música de Johann Strauss; ouvindo as " bigornas" do tempo que é como se marcassem a pauta dos nossos desconhecidos dias de 2012.Lembrando Cronos; ocorre-me a vetusta marca lavrada em pedra e inscrita nas minhas memórias de infância : " Como as águas da corrente/ Corre o tempo velozmente/ Nós também da mesma sorte/ Correndo vamos à morte."

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