quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Servidões e Contemplações


Turner - O Naufrágio (1805)
Sem rota, rotos de servidão, resta-nos o sonho das palavras interditas pelas Agências do Juízo Final. Respigadores dos desejos submersos nas lixeiras a que nos condenaram as vozes do sacral Mercado, respiramos o ar fétido da corrupção do mundo. Mas cá dentro os lacaios de serviço dizem que temos de cumprir as ordens dos senhores, sem o mínimo desvio, sem a mínima hesitação. Ordens são ordens e os credores, esses anjos da morte, não perdoam, mesmo que para isso tenhamos de deixar as ossadas ao sabor dos ventos do deserto. Ou então navegar na nau dos loucos em espirais de medo, como se procurássemos o Velo de Oiro no sorvedoiro do abismo.
Claro que nesta desordem globalizada há eleitos e culpados. Aqueles moram nos paraísos fiscais, estes nos pardieiros da expiação. As lágrimas da Ministra do Trabalho italiano derramaram-se dos ecrãs, como o paradigma do sacrifício redentório para os povos europeus que comeram ambrósia em excesso. Lágrimas de carrasco, encenadas ou verdadeiras, ritualizam pateticamente esta trágico-cómica cena europeia. E se a moda pega, aí teremos os nossos Passos, Gaspares, Relvas, Cristas e restante companhia, em frenéticos choros, numa inundação de lágrimas a destruir bens e pessoas, ante um malfadado povo, exigindo-lhe o esqueleto para pagar juros chorudos pelo generoso empréstimo da usurária troika. Ainda se as lágrimas, rosas imaginadas pelo poder, se transformassem em pão, como no célebre milagre das rosas da nossa Rainha Santa Isabel, sugerem os muitos milhares de desempregados! Pura ilusão! Embora tenhamos regressado ao tempo dos três Fs (Fátima, Fado e Futebol), a capacidade miraculosa dos nossos governantes não chega a tanto.

Schiele - Friederike Maria Beer (1914)
Entretanto o nosso Sócrates, no seu académico retiro parisiense, sorri cinicamente ante o espectáculo grotesco de Portugal e da Europa. Dizem mesmo que terá aderido à escola filosófica dos “Cínicos” (século IV, a.C.), fundada por Antístenes, discípulo e amigo de Sócrates (serão meras coincidências?) e continuada por Diógenes (o tal que, segundo a lenda, vivia asceticamente num tonel), para a qual a base da felicidade estaria no desdém pelas normas sociais, na renúncia à riqueza, à glória e a todas as satisfações dos sentidos. Seguindo à letra a herança dos seus líderes espirituais, o nosso ex-Primeiro passou então a viver como um sem-abrigo nos pórticos dos templos de Paris. E, segundo fontes razoavelmente credíveis, ter-se-á mesmo misturado com os “indignados” parisienses, reivindicando, num ecologismo radical, o regresso à natureza. E, embora desconfiemos (gato escaldado, da água fria tem medo) da sinceridade socrática nesta caminhada de redenção naturista, que nos resta senão, na tradição dos contempladores da paisagem, já que não a podemos comer, prendê-la para sempre no nosso olhar? Talvez seja a revolução final do ser contra a ditadura do ter.
Ah! É verdade não se esqueçam entretanto de pagar os 5 mil milhões de euros desviados do BPN! Esta voz é obviamente a do nosso autista Ministro das Finanças.  Alguém (os impostos do povo, enquanto houver) tem de pagar os botões de ouro dos meliantes. E, além disso, para a almofada do nosso sossego, segundo rezam as notícias, desde que tomou posse este governo tem engordado o Estado com três nomeações por dia. Bem prega Frei Tomás, façamos o que ele diz e não o que ele faz! Uns poucos sempre a engordar, outros (a maioria) condenados ao emagrecimento pelo pecado de terem nascido. Mas que querem, este mundo foi feito para os eleitos!



Bosch, A Nave dos Loucos, 1490-1500





1 comentário:

  1. Nestes tempos em que as imoralidades dos governantes e poderosos grassam com " legionella de mau tugúrio para contágio dos mais pobres. Arvora-se cada vez mais essa catrefa de maus capatazes nos desígnios de uma nova " Fanga" de latifundio da Troika. Cada vez mais a razão de Redol:« Os capatazes vêm à frente, de marmeleiros na mão, como guias do rebanho que levanta uma gaze de poeira no caminho. Deitam rabos de olhos para trás, se as gargalhadas estalam," não vão aqueles dianhos fazer alguma coisa a despreceito que amofine o patrão". (Redol, Fanga , p,29)

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