quarta-feira, 3 de outubro de 2012

As Metamorfoses no País Real e o Apocalipse

Arnold Böcklin - A Guerra (1896)


Depois de uma longa hibernação estival, despertei para esta videirinha portuguesa. A desordem das estações vem-me confundindo, hiberno no Verão, veraneio no Outono-Inverno, a tempo no entanto de poder observar os estranhos fenómenos que acontecem por aqui e escutar aquelas catástrofes que os profetas anunciam para os tempos futuros.
Vi um cavalo esverdeado montado por um agressivo coelho de dentes afiados, outro, desta feita um afoito cavalo negro, montado por um sibilino sábio financeiro que, embora autista, tem o poder de fazer perecer, num gesto austero, as gentes desta malograda terra pela fome e pela peste. Mais parece um dragão de papelão, mas quer ser o do Apocalipse.

Arnold Böcklin - A Peste (1898)

Donde vem tanta ira? Tanta que começaram a cair estrelas do céu e a lua tornou-se vermelha de sangue. Já comeram tudo o que lhes cabia nesta vida, agora satisfaçam-se com o esqueleto e o respectivo bolor! Nada pior que o pecado da gula! Assim brada o intrépido guerreiro.

 O povo desvairado com tal tormenta acotovela-se já nos aeroportos, nas estações de combóio ou mesmo nos cais, em desesperada e ilusória fuga para terras longínquas onde o dragão aparentemente ainda não impera. Sobretudo os jovens, já que os velhos cansados de deixar as ossadas pelo mundo estão condenados a ficar. De resto sabem de experiência feita que o inferno não é um privilégio lusitano.
Arnold Böcklin - Medusa (1878)

 Mas os outros dois cavaleiros são ainda mais temíveis, um montado num cavalo branco tem três cabeças viperinas e segue submisso as ordens do quarto cavaleiro, um espantalho de cifrões tatuados numa cavalgada imperial. Este cavalo não tem cor, ou melhor, tem todas as cores do mundo, para não se ver à vista desarmada. As autoridades locais têm aliás como vocação primordial proibir o uso de quaisquer lentes que possam ajudar as gentes a descortinar na neblina que o envolve a sua identidade. As caudas destes cavalos do terror são semelhantes a serpentes que rapidamente começaram a dominar o país.  Os sinais dos dias da ira vão-se propagando num tropel caótico.
William Blake - O grande dragão vermelho e a mulher vestida de sol (1806-1809)


Um pobre garoto da região de Sintra foi mordido por uma víbora venenosa. Foi o primeiro sinal. Em Setúbal, serpentes descomunais infiltraram-se nos esgotos e surgem inesperadamente no interior das casas, através das sanitas, ou na busca de ratos e homens-ratos pelas ruas da cidade. Apavorados os comerciantes fecharam as lojas, as sanitas das casas foram seladas a betão por precaução, brigadas de agentes da Protecção Civil tentam em vão impedir a catástrofe. A obstipação generalizou-se com o pânico dos habitantes. Segundo alguns entendidos na matéria, a explicação para o insólito fenómeno estaria nas radicais mudanças climatéricas, compelindo os répteis da Amazónia a subir para o hemisfério norte. Mas nem só de ofídios se apavoram estes lusos indígenas.
Ferdinand Khnopff - Istar (1888)

 No pacato rio Zêzere, foi há dias avistado um ameaçador crocodilo que num ápice devorou dois turistas em deliciada viagem de núpcias. E no também bucólico rio Tua, um majestático hipopótamo flutuou junto à futura sinistra barragem. Dizem alguns que tem uma pose socrática e edipiana, neste caso, como é óbvio, a origem etimológica do epíteto tem mais a ver com a EDP do que com o conhecido mito de Édipo que não se adequa ao inconsciente colectivo deste mamífero artiodáctilo, com traumas especificamente tropicais.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

 Mas os sinais deste anómalo povoamento não se ficam por aqui. A vila da Azambuja foi subitamente invadida por alguns tigres que os mais sensatos atribuíram a uma fuga de um circo em ambulância pela região. São pareceres, discutíveis mesmo na sua sensatez. Por isso a população do burgo, a quem faltou tal sensatez, deixou o burgo deserto, agora entregue à voracidade destes felídeos entretidos com as vitualhas abandonadas.
Arnold Böcklin - Tritão e Nereida (1877)

Entretanto gafanhotos do tamanho de cavalos adejantes destroem o que resta da nossa parca produção agrícola. E nas auto-estradas do país quase sem trânsito manadas de toiros furiosos investem contra os poucos incautos automobilistas que se atrevem a circular neste inóspito asfalto poisado na ocidental praia lusitana. As praias fluviais foram também encerradas, pois milhares de piranhas abocanharam quanta perna e braço desnudos acharam nestes rios outrora bucólicos.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

O caos vem-se assim instalando ao ritmo destes bestiários predadores. E há mesmo boatos que correm nas asas de escorpiões voadores segundo os quais Portugal já estaria mesmo a ser governado por enormes lagartos verdes, embora disfarçados por enquanto de seres humanos. Claro que a culpa não é dos animais como nós criaturas da vontade divina, mas dos desmandos das forças obscuras que governam este mundo. Obscuras é uma maneira de dizer, pois nesta noite de artifício todos os gatos são pardos e as lunetas da alma foram fechadas a sete chaves como o Livro dos Sete Selos. E, segundo se diz, apenas se salvarão os adoradores do bezerro de oiro.
Alfred Kubin - Adoração (1901-1902)

 Mas, para nosso ânimo e dignidade patriótica, as notícias de Espanha, Itália e Grécia, dão conta de eventos semelhantes. Os sinais do fim evidenciam-se a cada hora. E eu, ao olhar de manhã para o espelho, notei atónito que o meu rosto estava também a tomar angulosidades reptilárias. O Apocalipse entrou silenciosamente em minha casa. Estava tão surdo que não ouvi as trombetas.
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

PS: Quase todas estas informações foram recolhidas no jornal Correio da Manhã (1-10-2012), a interpretação dos factos e os comentários são da minha inteira responsabilidade.



Odilon Redon - O Pólipo (1883)
 
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)



Arnold Böcklin - Angélica guardada por um dragão (1879)
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)



Zdzislaw Beksinski (1929-2005)
Zdzislaw Beksinski (1929-2005)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Canção do Ceguinho: a lengalenga lusitana



Picasso - O velho guitarrista cego, 1903 

No meu quarto
Janelas semicerradas
Ouço um longínquo canto popular

Escutai agora senhores
Histórias de pasmar

No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!
Tanta história sem tento!

O pai viola a nina
Doze meses menina
O galho está no acto
A viola no saco
A morrinha no sapato

Eis casos de espantar
Aqui vos estou a narrar

A filha mata o pai
Ossos de carne parca
Pra quê ambrósia
Com lixo de mal andar
Só feito pra estorvar
E a herança cansada
De tanto esperar

Uma esposa mata o esposo
Outro esposo a esposa
Tanto tédio no lar
Esgazeados de tanto estar
Anda bolor no ar
E o dinheiro a azedar

Gira a roda! Gira! Gira!
Gira a roda a arfar
Gira o caos
Gira o mundo
Modos de mal-estar

Tal inferno em vida
E o vento a rufar
Tudo a molestar
O futebol está a dar
Vacinas pró mal-estar
Mas já nem os três efes nos salvam
Deste lusitano prantear
É o fado! É o fado!
Deste povo mal-amado

O pedófilo fila o pénis
No dar a dar
De cu no ar
Dos anjinhos azuis
De mau fadar
Barrocos
Secos e molhados
A coxear
Sodoma
De pé no ar

Sodomizados de todo o mundo uni-vos
A vitória será vossa
Nesta casa pia da vida
A justiça há-de triunfar
Diz um optimista a alar
Questão a ponderar
Murmura o juiz de pau no ar
Tal o poder de mandar
Ou dos que em mim mandam mandar

Gira a roda! Gira o caos!
Gira o mundo! Tudo gira!
Giração de nervuras
E nervosos
E nevroses
E neuroses
E artroses
Não pode mais meu coração!

O aluno bate na professora
Não o ensina a voar
Nem telemóvel tocar
Um bulício no ar
Três dias de castigo
Um tempo pra vadiar

O rapaz de mau-humor
Nunca conheceu o amor
Mas na vingança do olhar
Capta maligno
A violação da vizinha do andar
Num vídeo de alarmar
As pombas do lar

No meu país há tal desalento!
Tanta dor! Tanto tormento!
Tanta falta de talento!

Nas procissões a Maria
É vê-los anjinhos a voar
Chagas mil a florir
Parecem ossadas a chorar

O Ministro palra palra
Charla charla a oposição
Todos querem domesticar o ar
Pac pec pic poc puc
Da sagrada economia
Mas a Troika veio finalmente atinar
Os novelos no ar
Dos luxos desmedidos
Das indolências do Sul
Vizinhas das Áfricas do inato preguiçar
Vem dar o que tira
Mais tira do que dá
É a crise dos mercados
É a bolha imobiliária a arrasar
Os mais pobres dos pobres
Os pobres e os menos pobres
E veio pra ficar
Até o sangue se sugar
Ou a bolha rebentar
Ou o povo se acabar

Henri Cartier-Bresson, Madrid, 1933


E as finanças dos pobres
Que têm de ser infinitamente pobres
Como ditam as escrituras dos camelos e das agulhas
Meus filhos!
A fome dos tubarões é infinda
Sede pacientes
Deixai cair os dentes
O céu com juros pagará tão penosa travessia
Que a morte vos seja bem-vinda
Já que à vida vos troikaram as voltas

Tanta dor! Tanto tormento!
Tanto plano de fomento!
A fomentar o engodo
Em Domingo Gordo
Rostos lívidos a mascarar
No logro deste Carnaval
Caretas das flores do mal

Tanta dor! Tanto desalento!
E a TV a dar a dar
Nem sim nem não antes pelo contrário
Os prós e os contras
E os politólogos
E os economistas
E os fiscalistas
E os comentadores
Todos ecos dos ecos dos ecos
Em uníssona voz coral
A encenarem com as virtudes do mercado
A expiação colectiva nas vozes e no olhar

É a vida! É a vida!
E a internet a fornicar
Transparências no teclar
É a aldeia global
E o grande olho dum novo deus
Guardião desta ordem universal
Há palavras heréticas a punir
Imagens de revolta a reprimir
Mas ninguém leva a mal
Até ao dia do Juízo Final

É entrar! É entrar!
Os bilhetes estão a acabar!
Anda euro no ar
Prós doutos no tragar

No meu país há tal desencanto
Cantos e descantes
Cantochão dos vermes da corrupção

Venham ver o sangue a escorrer
Seco do canto
Venham ver a liberdade de morrer
Por encanto
Assim de fome
Na escassez de ser ou ter
Venham turistas e diplomatas
Animais neanderthais e outros mais
Venham ver!
Esta outrora
Aldeia imperial
De papelão marcial
A arder
Antes que as cinzas
Vos ocultem o olhar 
Venham ver
Com a urgência de não
Haver mais
Nas trevas deste fado
Mais-valias a haver
Ventres fartos de as lamber

Carne vermelha branca azul negra mestiça
Arco-íris deste pedestal
Vende-se a quem der mais
Desempregados aos ais
Abutres asados
Outros mesmo desasados
Esvoaçam todos na gula
Dos saldos da carne de trabucar
Praças de jorna na moda
São os mercados neoliberais

Picasso - Os pobres à beira do mar, 1903


A fome é tanta
É comer e chorar por mais
Caviar e peixe cru
Champanhe e pitéus de truz
Lagostas e avestruz
Sempre os mesmos a enfardar
Aos outros o fardo da morte em vida
Severa e Severina

Venham ver
A esfíngica face a olhar
As ocidentais borras de maresia
Cruzes doridas tal o vergar
Na névoa
A diluir
A rebeldia do olhar
Resignado rebanho à beira-mar
Ao ritmo dos queixumes
Quem manda em tal demanda?
Quem manda é o pastor das almas mortas!

Turner - Mar encrespado com naufrágio, 1840-1845
  
Venham ver!
Venham ver!
Melhor que pão e circo
Que odor a mirto
O escarro ocidental
Último poiso neanderthal
Na indecisão da merda e do mar
Tágides mungindo nosso destino

Todos filhos da mesma mátria
Da mesma pútria
Que tais filhos pariu
Madrasta madre de todos nós
Não há mama pra ninguém
Salvo seja!
Salvo seja!
Menos para alguns
O leite derrama-se todo prá bocarra
Dos infantes eleitos
Preclaros artífices do golpe de mão
Familiares antigos desta nova inquirição

Volta Nobre
Estás perdoado
Que desgraça nascer em Portugal!
O pior está ainda pra vir
No barranco pior que os cegos de além-mar
Bem agoiravas Camilo Pessanha
Eu vi a luz em um país perdido!
Perdidos para sempre
Pior que nas turbulências do mar
Pior que o escorbuto ou comer as solas do andar
Nas Naus Catrinetas do nosso marear


Victor Hugo -  Ma Destiné, 1857


País à vela panda
Anda ver isto ó Miranda!
Que as nações tolas são mistérios
E nós rumamos para o infinito do nada

O mar morto de ver tal odor
Empesta o ar
Com tal fulgor
Casinos bordéis e greens à beira-mar
Até D. Sebastião estonteia
Com a heroína
À porta da nossa Hora
E as violas tangem Quibires a golfar

Foi-se a paz
Foi-se a guerra
Foi-se o sangue a terra e a guelra
Foi-se Santiago e São Jorge
Heróis do mar
Foi-se o Botas e o Demótico
Foram-se as jóias do mar
E as do futuro do nosso passado
Efémeras miragens do nosso navegar
Só os mortos e os loucos ficaram a boiar
Orientes nas órbitas vazias do olhar
Nem rei nem roca pra fiar
Tudo disperso nada inteiro
A não ser a bola de pilhar
Os destroços dos desejos
Destas almas a piar
Águas bentas
Na poluição do desalento


Courbet -  A onda, 1869


Um profeta ainda clama
É a hora de segar e martelar
O salso fundo do luso ar!
Mas o nevoeiro é tão denso que cega até os olhos do mar!
E aqui se encerra esta história de pasmar!


Annie Leibovitz -  The Wizard of Oz, 2005

PS - Este cantor popular, em andanças pelas ruas da cidade, apesar da cegueira e da sua cultura rudimentar, manifesta nos seus versos alguns ecos das vozes de António Nobre, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. Certamente escutou nas noites de vagabundagem alguém que solidariamente lhe leu alguns versos destes poetas. Na sua genuína inocência transfigurou-os de acordo com o seu jeito peculiar de cantar os males deste mundo.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Fragmento do diário dum cibernauta



Mark Rothko - Ocre e vermelho

 Nas redes sociais, há quem morda com os dentes da alma, outros com os do cão desdentado. Ninguém leva a mal, mesmo os pesadelos deste mundo virtual. Há quem suspire de solidão, outros de insatisfação. Há quem imagine o outro ideal à beira da sua mão. Há quem invente amantes ao sabor das suas ficções. Há quem seja camaleão, sendo verde se faz amarelo, de amarelo vermelhidão. Há narcisos para todos os gostos, mas também quem procure elos na escuridade da solidão. Há quem tenha cem anos e escassas rugas dos olhos de 20. Há quem se disfarce da criança que nunca foi. Ou, em barrocas sinédoques, diga aqui estou eu: um pedacinho de pescoço, o barco à vela panda, o rosto vazio, o fantasma espalmado, o brinco de princesa, o colar, a flor de lis, o rego do desejo, o sinal negro do peito, o rabo do gato. Há links, likes, posts and comments. Há quem veja tudo a preto e branco ou quem não distinga o preto do branco, enquanto outros vêem-se a implodir em pancromáticas festas dionisíacas. Há fotos do artista enquanto jovem, da mãe, da amante, dos avós, dos amigos em eufóricos convívios ou simulados tagatés. No recanto do jardim, na montanha, na orla do mar ou do vulcão. Há muitos vídeos de paisagens, sobretudo crepusculares, e corpos em manobras rosas, com músicas melosas, tipo jardim das delícias para enamorados em cios de lua cheia. Mas também há vídeos musicais sublimes, daqueles que nos fazem sentir o dedilhar da mão de Deus. Há muita poesia, boa, má, assim-assim. Há poetas esquecidos, outros por esquecer, outros a amanhecer. O importante é escrever. Infinita é a paciência do teclado. Há músicas que nos enlevam, outras que nos matam de tédio ou de bolor. Erudita, popular, popular-erudita e erudita- popular. Uns dizem gosto, outros desgosto, outros nem por isso. Há quem diga, foi tão bom, Ninó, mas já passou, para o ano há mais. Não caias em nostalgias! Há quem se baste com o contacto ou com o toque, estou aqui, alguém está lá? Há chats e chatos, mas outros de humor corrosivo. Convém estar atento a estes casos, pois podem corroer o computador. Pior que os vírus! Mas há também quem respire de tédio, num arfar tão forte capaz de corromper a rede. Estes são os mais perigosos. Há narcisos e rosas de Santa Terezinha. Lol e fol, fol e lol. Corações negros e bolas de cristal. Círculos de riso amarelo de tanto rir. Mas há também quem chore, para dentro, obviamente. Há jogos, causas e jogatanas para todos os paladares. Podes mesmo plantar alfaces no teu ecrã imaginário e exportá-las para a Cochinchina, com a vantagem higiénica de manteres as mãos imaculadas.


Magritte - Ceci n'est pas une pipe

 Há floras suspeitas, canções de ódio e de amor, esgares de revolta. Crepúsculos e ressurreições na paisagem dos corpos. Há quem abane fantasmas pelos corredores do medo. Há Big Brothers a vigiar  masturbações, subversões e outras corrupções -  nus em pose ou pousados em sossego, falos gastos de tanto uso, escorpiões cravados nas gargantas, vozes a apelar à sensata utopia de acabar com a indignidade e a exploração. Cuidado com os apelos à louca ideia de mudar este mundo! Há quem diga mal dos políticos que nos lixam, mas tudo dá em catarse. Ao menos, nesta democracia mediática, podemos caricaturá-los, dar-lhes safanões, calcá-los, roer-lhes os ossos, que a terra não treme nem as grades se fecham por tal escárnio demolidor de ídolos de barro. Há também quem defenda a Terra, mas nunca tenha posto os pés na terra. Há gatos e cadelas a ronronar nos colos das Madonas. Dinossauros de laçarote estendidos na areia dos desertos da Líbia. Corpos esfíngicos de bronze em Carcavelos ou Copacabana.


Chirico - O Enigma do Oráculo

 Mas Apocalipse, como dizem algumas más-línguas com piercings de inveja, por aqui só se for português-suave. Eu faço aqui a minha psicanálise, barata e com rede. Tenho mil amigos que nunca vi nem verei. Outros mil na janela da minha expectativa. São os meus fantasmas mais fixes e os meus sábios analistas. Em suma, os meus amigos mais fiéis. Nunca me traem, como me traíram os da outra “vida”. Eu adoro o FB ou o Google, este universal desvario de triliões de sinais. Odiava o caos, mas este tornou-se progressiva e intimamente a minha casa. Estou só na companhia das infinitas vozes do universo. Aqui todos podem criar o seu mural, a sua cronologia, as fotos do seu ser vertebral ou o invertebrado, a sua inaudita ficção pessoal, e voar para lá do cabo do mundo. Posso disfarçar-me de rei, imperatriz, meretriz ou pedinte. A propósito não têm uma aspirina para a dor de calo? Hoje já fiz a minha revolução: a sexual, a política, a ecológica e a doméstica. Amanhã com a ajuda do Deus cibernauta outras mil me esperam. É só teclar, publicar e esperar. O mundo está rendido a meus pés. Se isto não é o Paraíso, eu me chame Pantaleão. Estou aqui tão concentrado que já não reparo nos corpos e paisagens ditas reais. Afinal real, mesmo real, é este mundo virtual. O mundo sou eu e as formas vazias que preencho ao sabor das minhas fantasias. E sabem que mais, aqui tornei-me imortal, nem as Parcas se atrevem a entrar neste reino divinal. Bolas! Finalmente sou feliz! E atirei com o meu psicanalista para o desemprego.


PS- Este “post” encontrado amarfanhado, num contentor de um afamado hospital psiquiátrico da capital, contém conteúdos que não se identificam com as opiniões do responsável deste blog. Resolvemos apesar de isso publicá-lo, enquanto testemunho de uma vida inteiramente votada ao universo das redes sociais.

Paul Klee - Monument in Fertile Country


terça-feira, 22 de maio de 2012

Palavras e Paisagens


Gustave Courbet - O mar em Palavas (1854)

O mar      

De onde vem o fascínio do mar
o sussurrar dessas maresias de ternura e medo
íntimas vozes no deserto do ar

A poesia é a tensa escuta
desse rumor da nossa orfandade
o terso silabar de um búzio




Júlio Pomar - Mulheres na Praia (1950)


Paisagens

rostos hirtos     areia
braços que espreitam
por entre gretas e medos

casas ósseas    peixe magro
redes mergulhadas
nas carnes
como veias
vultos embebidos na mesma morte
cabeças cavalgando o meu sangue




Pierre Puvis de Chavannes - Jovens à beira-mar (1879)


Jovens à beira-mar
  
Flutuantes e tristes
Corpos de fronteira
Perdidas na solidão das falésias
Esquecidas
Entre flores marinhas
Como se voassem
Por dentro
Sereias amputadas
Entre a terra, o céu e o mar

Que espera e meditação as ocupa
Na desnudada paisagem dos seus corpos?

Donzelas
Estátuas volantes do desejo
Na clausura dos interditos
Uma tacteando os longos cabelos
Confrontando o mar
Outra de costas
Num desespero de quietude
Outra
Numa aparente indiferença do olhar
Ocupam na lassitude dos corpos
O pesadelo das paixões sem objecto
Figuras no território das definitivas esperas





Turner -  Pôr-do-sol


Poente

Sente-se um hálito roxo no entardecer
Objectos esparsos a nascer
Sobre a terra
Corpos ociosos
Dançam nas dunas
Como se celebrassem
Os silêncios do acontecer
Nem uma folha a morder o cio do ar
Nem o múrmur dos ossos
Nas areias da paisagem
Nem vermelhos solsticiais
A derramarem-se nas meninas do olhar
Apenas sons longínquos de remos a ciar
Rumores perdidos a navegar




Caspar David Friedrich - Nascer da lua no mar (1822)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A metamorfose: do dia dos trabalhadores ao dia dos acossados


Goya - Saturno (1820-23)


“O espantoso não foi os portugueses terem acorrido em massa ao Pingo Doce – 50% de desconto é muito e estamos muito pobres. O extraordinário […] é não terem acorrido em massa às manifestações ou cercado o parlamento. […]. Essa resiliência nacional é histórica. Foi esse atavismo que nos permitiu aguentar 48 anos de ditadura sem que a oposição organizada fosse substancial. […].Portugal continua a ser o país do retrato de Alexandre O’Neill: uma feira cabisbaixa, questão que temos connosco mesmos, remorso.”

Ana Sá Lopes, jornal  i, 3-5-2012



Bruegel - O País da Abundância (1567)

Em vagas sucessivas, carros a empurrar carros de mão com toda a gana do assalto aos arraiais do amigo/inimigo (as prateleiras dos supermercados Pingo Doce, repletas de manjares dos deuses a derreter os olhos do povo, por cada dois pagas um, pechinchas a acalorar os estômagos vazios, ou em vias disso, dos consumidores), lá iam famílias inteiras e inteiriças, pais, pais dos pais, avós e avôs, infantes e infantarias, varões e varoas assinalados em busca da nova Taprobana: o país da Cocanha, esse utópico reino da Abundância, tal como Bruegel tão exemplarmente a pintou em 1567, tornado pela benfeitoria miraculosa do Rei Ubu da Distribuição Lusitana realidade por um dia, até ver: o 1º de Maio de 2012. Assim se faz a nova História – o celebrado dia do trabalhador viraria aos olhos estupefactos do mundo dia dos consumidores consumidos pela astúcia voraz de um luso mercador, para ilustração moral do mundo do trabalho. No rio de Lete ficarão para sempre esses corajosos trabalhadores de Chicago que, em 1886, se manifestaram pela reivindicação das 8 horas diárias de trabalho e viriam a consagrar tal data como o seu dia. Mas a partir do passado dia 1 de Maio tudo mudou no mundo: um novo ciclo se abriu ou não fôssemos nós os pioneiros da globalização. Claro que nem tudo correu bem, o que daria azo às críticas sempre maléficas da esquerda.

Ensor - A Raia (1892)

As massas são controláveis como se pôde observar nas disciplinadas manifestações convocadas pelas duas centrais sindicais, apesar da austera austeridade da Troika e dos seus lacaios, mas uma multidão em fúria consumista não. Os últimos a chegar deparavam com o horror do vazio, por isso as hordas em movimento precipitavam-se em fúria para o seu destino, num atropelo desvairado de desvairadas gentes (arraia-miúda, arraia-média e arraia-miudinha). Muitos destroços iam ficando pelo trajecto entre a entrada, depois de longas horas em impacientes filas sob o olhar atento dos seguranças, e o lugar das Delícias: crianças, ceguinhos, coxos, velhinhos, mulheres obesas ou escanzeladas; chinelos, bengalas, chupetas, saquetas de rebuçados, óleos derramados, sangues dos arranhões da luta pela sobrevivência ou menstruais; um carneiro vivo perdido no vaivém das imperiosas passadas; arroz, muitas bagas de arroz como réstias de festas casamenteiras; alhos pisados como em almofariz e cebolas a lacrimejar dos olhos; ananases e anonas a dar um odor tropical; rins com litíase de vaca e porco; seguranças inseguros e funcionários, amargurados com o infernal feriado, espezinhados; fígados de raia e raias desfiadas, petingas amarfanhadas; amálgamas de cabidela, águas de Colónia e aguardentes; bolas de naftalina; bacalhaus de rabo na boca a saber ainda a maresia; sacos rotos de farinha a empoeirar os rostos carnavalescos, e até um enorme leão de plástico a fingir de verdadeiro. Todo um magma em movimento sôfrego, como a fúria de um vulcão ou de um tsunami. Primeiro de Maio, ex-dia dos trabalhadores, agora dos mercadores, sábios e astuciosos no lograr das massas ditas consumidoras. Massas, farinhas ou multidões tanto faz. Carcaças pelo chão. E nem faltaram os abutres a esvoaçar junto ao tecto, na mira dos despojos da batalha. O caos em movimento – uma multidão de desejos de dentes arreganhados, máscaras de terror das fantasias grotescas de Goya ou Ensor.

Goya - Cabeça e quartos de carneiro (1808-12)

No altar, o Rei Ubu gargalha prazenteiro e sorrateiramente vai dando alfinetadas nestes servos alvoroçados deste reino sem rumo. Com uma luneta avista eufórico, lá ao longe, as manifestações ordeiras dos obreiros, seja na Alameda seja na Avenida da Liberdade, com os líderes sindicais a apregoar  slogans rituais para os cem mil do costume: estandartes, cartazes, bandeiras vermelhas e negras, caricaturas das Troikas, palavras de ordem (não da desordem), passo certo como exército proletário que se preza. E Ubu escuta-os cinicamente risonho: “Exploram-nos, façamos-lhe a vida negra com as bandeiras da fome!”; “Abaixo O Bezerro de Oiro e seus serventuários!”; “Abaixo os que secam os Sonhos colectivos!” “Abaixo os vampiros que voam cada vez mais raso!”. E assisadamente o nosso Ubu murmura sarcástico: “ Paroles, paroles …! Quem vos dá o pão sou eu, e não esses retóricos palradores da fome dos outros. Sou o Rei Ubu das mercadorias, se eu fechar a loja e me puser na alheta para a Holanda, morrem de fome. Num mundo de loucos só um louco Rei como eu vos pode governar. Vinde a mim políticos, meus serventuários, lá vos tenho que atirar com mais uns ossos de luxo para vos enredar no meu rebanho!”. E o meio milhão que, num corrupio frenético, invadiu por esse país as Catedrais do Agridoce - uns de saca cheia, outros com ela a meio, e outros, os fracos perdedores da corrida, dela vazia, ou melhor, das ilusões de tal bondade mercantil - não pode ver nem entender essa outra multidão (aqui para nós bem menor) que sabe que as astúcias mercantis dos reis Ubus deste mundo só dão o que podem tirar com lucros abusivos a estes acossados pelas miragens do dito consumismo. Dividir para bem reinar. E em tempos de crise, as migalhas são miragens de suculentas iguarias. Mas ao menos, diria eu, poupem-nos a este deprimente espectáculo. Pois é, pão e circo, mas quando o pão escasseia pode o circo afundar-se nas suas ruínas. Claro os cavalos em pânico e extenuados no fim da corrida também se abatem. Talvez um dia todas as pessoas se lembrem que, antes de consumidores logrados pela “merdre” dos ubus, são pessoas com inerentes direitos à dignidade. Mas enquanto o estômago aperta lá estarão de braços abertos os Ubus deste mundo e do outro. A fome tem muita força!

PS: Pedi emprestado ao dramaturgo Alfred Jarry (1873-1907) o nome da personagem burlesca, absurda e tirânica do Ubu roi, mas qualquer coincidência com a realidade deste meu texto é um mero produto do acaso, com excepção do “merdre”, provocação ubusiana ao público com a qual se iniciava o seu espectáculo de 1896.


Ensor - Esqueletos lutando pela posse de um enforcado (1891)

sábado, 28 de abril de 2012

Soror Mariana: a escrita da paixão

Chagall - O Aniversário (1915)
Começas com o vocativo “meu amor” na 1ª carta dirigida au teu amante francês, Cavaleiro de Chamilly, antropónimo não nomeado conforme as conveniências, expondo pela palavra a plenitude do teu ser em contraste com o vazio da tua clausura conventual. Mas terá ele existido ou tudo terá sido obra do teu engenho amoroso? Paixão, a narrativa em forma de cartas com que deste sentido à tua vida ditada até então pela vontade de teus pais, já que excluída de dote para poderes casar e dar o teu corpo ao repouso do guerreiro como era de convenção. Após a partida do teu amante foste tecendo a teia da totalidade sem exterior, pois nada existia para lá desse círculo inexpugnável de desejo. Isso fecundaria o óvulo vazio da tua existência, fazendo desse nado-morto o sentido de uma vida. Acto de desmesura, loucura em linguagem comum, ou cegueira para tudo o que estava para lá do teu círculo mágico. Da tua inexorável solidão inventaste a íntima relação solidária com um cavaleiro que não te merecia mas que tu criaste com a força do teu desejo, um corpo a abrir-se à tempestade da paixão. O caos magnífico no lugar da ordem anquilosada. Tu eras eu, eu eras tu, sem fronteiras e necessárias pontes. O outro de ti fez crescer o absoluto em ti, o dizível indizível feito de palavras de nostalgia (a dor do impossível regresso) e simuladas vinganças (o suicídio como punição de amor). O espelho partiu para sempre mas não se fragmentou dentro de ti. Ou melhor, com os fragmentos dispersos, os estilhaços dos afectos, foste reconstruindo pela palavra a unidade perdida: o paraíso reencontrado com o sangue das palavras – o único sentido da tua vida. Diria contigo.
 Amo, continuo a amar-te no meu delírio de frases a flutuarem das entranhas do teu/meu corpo. Amo, logo existo. Deixei de ser a morte em forma de vida contra os códigos castradores. Escrever-te é o meu exercício da paixão, continuar a inventar-te como o elo que faltava para fundar a minha vida, para além da clausura imposta pelos fantasmas sociais. Dizer-te o meu corpo liberto na fúria dos afagos e dos beijos. O meu corpo aberto aos ritmos das tuas mãos e do teu pénis, faca terna a ferir-me na festa do prazer. Afirmação do meu corpo, do nosso corpo. Meu amante idealizado, como pudeste partir, partir-me, deslocar-me das raízes do meu sonho. És simultaneamente o adjuvante e o oponente, quando as tuas cartas escassas me iam destruindo a ilusão da tua paixão. Cheguei a dizer-te  subjugada e humilde, ao menos a compaixão, como forma de te sentir ainda ligado a mim, mais não fosse pela piedade, pela ternura última do grande amor. Mas já estavas longe, demasiado longe, distância lida na cada vez maior brancura das tuas cartas tão escandalosamente formais.
Foi todavia, Mariana, essa lonjura que seria a tua pulsão apaixonada da escrita da paixão. Escrever foi a tua catarse, foi o teu modo de te reinventares na ficção da paixão. Foi o teu modo de morrer de amor e ressuscitar pelo verbo: ocupar uma ausência – um lugar vazio. Dupla clausura a do teu corpo: a cela conventual e o insulamento definitivo. Mas escreveres foi o teu modo de reinventar o desejo, o teu e o dele. Amar é diferenciar, desamar é indiferenciar. Escrever o ardor do corpo amante, olhar o seu retrato, olhar-se como se fosse ele, até ao limite da perdição, da desordem (o caos interior), do dizer-se “eu não sou eu”, desapossada de ti pelo ser da paixão. Até ao limite de confessares  “eu escrevo mais para mim do que para ti” – círculo encerrado para sempre nos ardores do teu narcisismo. Da criação do absoluto. Fizeste então da paixão um exercício de estilo, a palavra do corpo para sempre liberto dos cilícios sociais. Daí a distância do ele da 5ª e última carta – a alteridade confirmada a desmerecer-te. Eros e Thanatos. Mas não morreste de amor, porque, das cinzas do que te tomou como mulher-objecto, renasceste no negro a tingir as folhas brancas da tua vida morta. Palavras – teu corpo liberto. Escrever é tornar possível o desejo do impossível – a eternização do instante.
PS - À maneira de glosa das Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado (freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja (1640-1723), traduzidas para francês e publicadas em Paris, em 1669, como sendo de autor anónimo.

Schiele - O Abraço (1917)

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Nada Também Acontece

Chirico - O Enigma da Hora (1911)

Hoje queria contar-vos coisas terríveis, absurdas, abomináveis, incómodas ou imprevistas, como aquela cena do cão que mordeu o dono com os dentes da alma que não tem ou a do político que se suicidou com o veneno do vazio das suas causas ou a do homem que implodiu em plena rua com a força da raiva reprimida. Da fome que vai pelo mundo e dos que exploram a fome do mundo, dos estilhaços de bomba dos desesperados da terra, das sopas de letras dos poetas em défice de engenho e arte, das galinhas poedeiras a desgastar as unhas nas pranchas  soletradas pelos burocratas da Desunião Europeia, dos amantes enlouquecidos que brotam ácido sulfúrico no rosto dos amados, da resignação colectiva face aos fados e factos dos grandes poderes financeiros, da pobreza desta nossa democracia a esmolar nas ruas da desdita, dos políticos que dizem que sim mas que não, dos banqueiros que bancam as nossas desgraças, dos desempregados a apodrecer nas praças de fome e solidão. Da Síria ou da Guiné com as suas guerras fratricidas, do Inverno que nos tolhe em plena Primavera, dos fardos de solidões no silêncio dos casarios. Ou mesmo o mais comezinho: a última operação plástica ao rosto nefelibata da Lili, milagre caseiro do eterno rejuvenescimento, ou a medalha de ouro a atribuir ao corredor de fundo Mota Engil, pelos briosos actos cívicos em glória da pátria. Mas hoje não sou capaz. O nada tolhe-me os movimentos, o nada cala em mim os gestos deste mundo sem rumo. Como se nada de importante estivesse a acontecer, como se tudo se resumisse a este vazio interior. Hoje de facto nada aconteceu para mim. Apenas aconteceu o silêncio rumoroso de o dizer.   

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ler Hoje o Neo-Realismo (2)



Capa de Antero Ferreira (1941)

          O romance Gaibéus (1939) de Alves Redol; a poesia da colecção do “Novo Cancioneiro” (1941-44), na qual participaram Fernando Namora, Mário Dionísio, Joaquim Namorado, J. J. Cochofel, Álvaro Feijó, Manuel da Fonseca (em 1940, já havia editado Rosa dos Ventos), Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha, Francisco Tenreiro e Políbio Gomes dos Santos; a colecção “Novos Prosadores” (1943-44), onde se publicaram os primeiros romances de Fernando Namora, Vergílio Ferreira e Carlos de Oliveira, ou os contos de Mário Braga e Mário Dionísio; e a refundação da revista Vértice (1945) são os momentos fundadores da prática literária neo-realista. Esta revista, na sequência de O Diabo (1934-1940) e Sol Nascente (1937-40), seria um elemento importante na teorização de uma arte que fosse um factor cultural da luta política contra a ditadura e o sistema capitalista. Assim se foi forjando, apesar do rígido aparelho censório e persecutório salazarista, uma contra-imagem cultural de Portugal e do seu povo relativamente àquela que era imposta pelo Estado Novo (uma fusão do aldeanismo mitificado e do imperialismo ultramarino, tal como havia sido encenada na Exposição do Mundo Português em 1940), habilmente administrada pelo ex-futurista António Ferro com o seu Secretariado de Propaganda Nacional e a sua “política do espírito”. Estávamos na fase heróica do Neo-Realismo (bem assinalada nas Canções Heróicas de Fernando Lopes-Graça, com poemas de autores neo-realistas, ou nas Canções Regionais, algo que viria a estar na génese, nas décadas de 60 e 70, da música popular de intervenção com Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira), pois a derrota das forças nazi-fascistas, na 2ª Guerra Mundial, fazia prever, com um optimismo datado, para breve a queda da ditadura. À arte – com relevo, no imediato pós-guerra, para a poesia, pois, tendo em conta o alto grau de analfabetismo nas classes trabalhadoras, poderia ter transitoriamente como destinatário ideal o público-auditor em vez do público-leitor, embora a ficção narrativa venha a ter um papel primordial no movimento – cabia assim tonificar as aspirações revolucionárias populares nesta conjuntura. Como diria mais tarde Joaquim Namorado, “A poesia é uma máquina/ de produzir entusiasmo”. A partir da década de 40, os escritores neo-realistas iriam de modos diversos amadurecendo o seu modo de escrever o mundo, uns no sentido da articulação problemática e contraditória do eu com um tempo bloqueado historicamente, outros na busca de novas formas, tendendo por vezes para o simbólico ou o alegórico, para expressar a tensão entre a esperança e a desesperante continuidade desse quotidiano ritmado pela repressão, num quase patamar do absurdo.

Júlio Pomar - Estudo para o ciclo "Arroz" II (1953)


Júlio Pomar (1953)
 Em suma, o povo da macronarrativa neo-realista transitaria programaticamente, no campo ficcional, de objecto da História (ou das histórias) e do enunciado, como acontecera com o realismo-naturalismo, para virtual sujeito da História e enunciador ficcional mediatizado pela voz dos escritores identificados com a codificação marxista da emancipação popular e da configuração de um novo tipo de intelectual, tal como havia sido teorizado, desde os primórdios da década de 30, por Bento de Jesus Caraça (“cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura”). Mais do que escrever sobre o povo urgia escrever com o povo. Daí uma articulação entre a difusão da literatura popular (destaquemos, como exemplo, o Cancioneiro do Ribatejo de Alves Redol, de 1950, recolha colectiva de quadras populares, ou a publicação da responsabilidade de Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira dos Contos Tradicionais Portugueses, em 1957), tal como o fizeram no campo da música Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti, e a integração nas suas obras ficcionais de textos (lendas, quadras, rimances, aforismos, etc.) de origem popular ou da sua relevância como factores no processo de elaboração romanesca. Ao etnografismo estilizado e domesticador do Estado Novo, opunham os neo-realistas um etnografismo da dignificação popular, húmus donde se iriam gerar as suas obras. Por isso Alves Redol precedia a laboração dos seus romances com uma presença junto das comunidades rurais a representar ficcionalmente (gaibéus, avieiros, fangueiros, valadores, no universo ribatejano, ou os pequenos vinhateiros do Douro), de molde a captar o seu sociolecto específico, o seu folclore e as suas vivências. Este material recolhido, com bloco de notas e máquina fotográfica, seria posteriormente montado nos seus romances de acordo com a perspectiva criativa e empenhada do autor. Deste modo o eu-etnográfico distanciado transfigurava-se num eu que comungava das vivências populares, pelo que o seu universo romanesco tem uma dimensão coral, numa interacção, no plano da linguagem, entre o sociolecto popular e a sua voz “erudita”. Mas esta via etnografista redoliana, visando uma arte popular, seria apenas um dos modos de configurar a dimensão épico-lírica do Neo-Realismo, já que com Carlos de Oliveira, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca ou Fernando Namora, a escuta/escrita da voz popular e a busca de uma nova poética colocar-se-ia noutros níveis de pesquisa literária. Cada percurso de vida iria cristalizar-se de modo diferenciado, na busca de uma poética da emancipação popular: com Soeiro, numa articulação entre a sua militância político-cultural e o operariado alhandrense, tendendo para um lirismo coral bem expressso em Esteiros (1941); com Fernando Namora, pela sua experiência inicial de médico da província na Beira-Baixa ou no Alentejo, na fronteira entre o realismo crítico e a epopeia neo-realista; com Manuel da Fonseca, num lirismo da errância e da rebeldia, num Alentejo depurado pela memória e com uma dimensão mítica; com Carlos de Oliveira, numa solidão/solidária com o povo oprimido da sua Gândara infanto-juvenil, paisagem e povoadores (camponeses e uma burguesia provinciana anquilosada), permanentemente reinventados ao longo da sua obra, siglas que metaforizam, tanto na poesia como nos romances, o princípio da esperança (“Cantar/é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras/ fique embora mais breve a nossa vida”) ou um tempo bloqueado e sulcado pela desolação. O canto interventor irá dar lugar a uma caligrafia mais intimista, num trabalho de depuração das palavras que atingirá com Finisterra (1978) o seu clímax, crepúsculo e morte de um mundo e expectativa, já sem a convicção explícita de outrora, que das trevas possa gerar-se um novo mundo.


Mário Dionísio - Reunião Clandestina (1947)

“A vida será, por muito tempo, uma questão de estômago vazio?”, interroga-se o narrador de Mineiros (1944) de Manuel do Nascimento. E embora a semântica da fome não esgote a temática neo-realista, hoje sabemos para mal da humanidade que ainda cabemos nesse tempo, com a agravante de sabermos também que é, como era, mais um problema político do que da ausência de recursos a nível mundial. Já não há gaibéus, esses camponeses depauperados que desciam ciclicamente da Beira Baixa ou do norte do Ribatejo para a Lezíria, onde “alugavam” temporariamente os seus braços para a ceifa do arroz, sujeitos à prepotência do lavrador e da malária, mas há ainda trabalhadores migrantes que entre nós ou no estrangeiro se sujeitam a uma exploração quase “esclavagista”. São os novos gaibéus. O desemprego (algo que havia sido tematizado por Soeiro e Leão Penedo, entre outros) é de novo um flagelo. Resta-lhes a emigração, largar a casa “confortável”, segundo a retórica cínica do poder, e aí podemos lembrar-lhes as obras de Ferreira de Castro, José Rodrigues Miguéis ou Joaquim Lagoeiro. As mulheres emanciparam-se, mas a sua condição social continua desigual, mais baixos salários que os homens, duplificação de tarefas no quotidiano (o emprego e o trabalho doméstico), marginalização a nível de promoção nos seus ofícios. Com as devidas distâncias, ainda se podem ler a tal respeito as obras de Manuel do Nascimento, Leão Penedo, Afonso Ribeiro, Faure da Rosa e Maria Lamas. Hoje há liberdade de expressão, mas o défice de cidadania é um obstáculo ao direito democrático à palavra. Felizmente já não sofremos a arbitrariedade da censura como aconteceu no tempo do Neo-Realismo. Não há censura, mas há olhares censuradores e censuráveis. Há, continua a haver espoliados e explorados, sem-abrigo, pobres e pobrezinhos, sopa dos pobres e caridade, mas a sociedade-providência já não é o que era e o Estado-Providência está a falir. Os neo-realistas ficaram entre nós, estão vivos e recomendam-se. O direito de todos à dignidade é a sua mensagem perene. E hoje também sabemos que a democracia não é uma dádiva, mas uma construção quotidiana, o que implica luta e uma consciência emancipada. E não esqueçam que sem cultura não há liberdade. Aliás, da luta clandestina, em tempos de ditadura, pela libertação do povo português nos ficaram também narrativas de Mário Dionísio, Soeiro Pereira Gomes, Manuel Tiago, Mário Braga e Manuel da Fonseca.
Podemos reinventar uma poética neo-realista como o fizeram diversamente José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Augusto Abelaira, Orlando da Costa, Baptista-Bastos, Mário Ventura ou José Saramago, na área do romance, ou, na poesia, Egito Gonçalves, Luís Veiga Leitão, António Reis, Zeca Afonso (o seu estatuto de cantor de intervenção quase apagou o reconhecimento da muita qualidade dos seus textos poéticos) e Manuel Alegre. Reinventar é uma maneira de dizer, escreveram de outro modo o Livro do Neo-Realismo. E a propósito, com tantos nostálgicos do salazarismo ou de outros reinos semelhantes, leiam o sempre actual Barranco de Cegos (1961), de Alves Redol, uma liturgia do poder totalitário e a sua desmontagem desmitificatória. Ou, para os nostálgicos do Império, o belíssimo romance de Orlando da Costa, O Signo da Ira (1961), Terra Morta (1949) de Castro Soromenho, ou então as narrativas cabo-verdianas de Manuel Ferreira, obras onde se ficcionaliza o olhar do colonizado sobre os feitiços do nosso “lusotropicalismo”. E para acabar, lembro que os neo-realistas não foram retóricos humanitaristas, falaram pouco de si por pudor ou porque falar dos outros foi uma maneira de falar de si, por isso vos deixo com um raro fragmento autobiográfico de Alves Redol: “Agora começo a parecer-me com um pássaro, descobri-o ontem no perfil de uma fotografia. Meio pássaro, meio índio velho, raízes à superfície das mãos que tanto amor inventaram, tanto rosto, e tanto, vincos de pensar, vincos de chorar para dentro, vincos de apetecer, penas de pássaro cansado de ninho e sem ninho, penas de sonhar, quase uma ruína, ou mesmo uma ruína, e na qual ainda vibra a mesma semente de juventude, pronta a reverdecer a qualquer hora, como as cordas de um instrumento onde a vida passa os dedos para me ressuscitar.” Ou, finalmente, com este belo “Soneto” de Carlos de Oliveira:

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.


Adelino Lyon de Castro - O Fardo (1945-1953)