terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os corpos usados e o declínio da sociedade-providência

Goya - Mulher velha

Desde o início do ano foram encontrados 12 mortos nas casas da solidão. Mortes sem sobressaltos, sem direito a notas de ternura de amigos e familiares ou a duas linhas efémeras nas páginas de um qualquer jornal. Mortos no anonimato de quem há muito não tinha nome, nem desejos, nem desilusões, porque mortos em vida. Velhos em ruptura com quaisquer elos sociais, de facto existiam como se não existissem. Condenados a um autismo sem culpa formada, apenas o rumor longínquo de um vago monossílabo recordado pelo comerciante da esquina ou um vizinho ficara deles nas rugas da memória. Claro que morrer é sempre um exercício de solidão, mas estes morreram para os outros como se nunca tivessem existido. Literalmente apagados do mundo dos vivos, ténues manchas diluídas nas páginas do livro da vida. Apenas os seus corpos putrefactos ou mumificados, tudo depende do tempo da macabra descoberta, são a mais-valia noticiosa. E tudo isto está a acontecer tanto no árido espaço suburbano, como no rural, onde as aldeias cada vez mais desertificadas já não têm o vizinho providencial num processo de interajuda. A sociedade-providência está a declinar e o Estado-Providência rudimentar e cada vez mais fragilizado não tem asas para o substituir. A ruptura geracional e a débil sociabilidade lusa, agravada pela crise económico-social, estão, por outro lado, na raiz do problema. Neste mundo de afectos ausentes e de mercantilização dos seres, a esperança média de vida aumentou substancialmente, graças ao progresso da medicina e ao ainda que debilitado Serviço Nacional de Saúde. Mas a dignidade do envelhecer não a acompanhou!


Célia Pena - No seu canto


1 comentário:

  1. Dizia há dias, num deambular temeroso, uma voz sozinha: "qualquer dia sou notícia trágica neste acrescentar cruel de indiferênça": « Estes tipos que mandam querem que os velhotes morram todos, que deixe de haver pensões e comparticipações para medicamentos! » Este acontecer começa a ser comezinho e brutal de repetição. Soam até vozes da corporação a preconizar que 70 anos são sinónimo de carreta fúnebre. Como se não bastasse a famigerada " Lei das Rendas" que quer que os idosos morram na rua. Dos quatrocentos mil e tantos contratos anteriores a 1990; metade foi resolvido pela morte solitária. Nos restantes, mais quinze anos, a morte substituirá o decreto. Este país não é para velhos !

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