quinta-feira, 8 de março de 2012

As Representações do Feminino em Carlos de Oliveira


Graça Morais

Em O Aprendiz de Feiticeiro (1971), Carlos de Oliveira, tendo-lhe alguém notado que as mulheres pequeno-burguesas dos seus romances eram recorrentemente pecadoras mentais, explicita tal modelo mental em função de um contexto sociocultural específico que enquadra estas personagens da sua ficção: “A moral sexual da província portuguesa (onde se passam esses livros) é um caldo rançoso com alguns feijões de pedra no fundo, os mitos que todos conhecemos: noiva de hímen intacto, fidelidade conjugal só da mulher, prática convencionalíssima do amor, etc. A mulher, aqui, nem sequer pode considerar-se o objecto erótico do marido. Talvez fugidiamente nos primeiros meses, mas passa logo à condição mecânica de incubadora, se não for estéril; se for (porque não há-de ela perpetuar esta sociedade, esta moral?), torna-se quase desprezível. O erotismo é pois um jogo para homens, fora do santo país do matrimónio. [...] A mulher casada ou aceita o código em vigor, transformando-se no útero indiferente, transferindo os prazeres da cama para os filhos, os doces, a má língua, o croché, a caridade, um pouco de luxo se possível (vestidos, anéis, pulseiras), a mansa escravatura do lar [...] ou cai no erotismo imaginado, sem parceiro, a pior solidão”.
Inserindo o autor este paradigma cultural na tradição judaico-cristã, por isso extensível “a todas as comunidades ocidentais”, esta suspeição do homem relativamente à mulher, configurada num imperativo espaço de impureza inerente à sua natureza sexual, geraria um ódio latente ao feminino, que poderia coincidir, porém, com um  equívoco fascínio recíproco, convertendo-se ao longo da História, em períodos mais extremados, nos rituais do diabolismo, da feitiçaria ou da purificação pelo fogo. E acrescenta: “os resíduos de tal mentalidade, particularmente visíveis na consciência da província, são hoje o algodão em rama que serve aos homens para agasalhar e esconder no armário o esqueleto das suas mulheres”.
A ideologia do Estado Novo, acrescentaríamos nós, por outro lado, não é despicienda relativamente a tal problema, pois atribuía à mulher o mero estatuto de dona de casa e reprodutora, portanto, com raros direitos de cidadania e totalmente dependente no plano jurídico do poder marital, algo que era, aliás, comum à concepção nazi-fascista no que concerne ao papel ideal da mulher na sociedade.
Nos romances de Carlos de Oliveira, as personagens femininas da classe média (um primeiro plano das narrativas) exprimem a aceitação benévola de uma solidão imposta e dos rituais quotidianos inerentes à mulher num meio social de matriz machista. Aquelas são, pois, domésticas domesticadas de acordo com o padrão e os códigos sexuais dominantes. No micro-universo da Gândara, paisagem matricial obsessivamente reinscrita na obra de Carlos de Oliveira, surgem-nos ainda, embora num plano de retaguarda, as camponesas (um colectivo duplamente submetido) vergadas à impiedade da infértil terra gandaresa e dos seus senhores; e as criadas de servir que se ocupam fielmente e quase sempre sacrificialmente das tarefas que os patrões burgueses lhes impõem. Mulheres que nasceram para servir e doar afectos, e a quem cabe, por vezes, habitar no campo sexual o lugar vazio da matriarca (por ex., a personagem Maria dos Anjos de Casa na Duna). É, porém, no seu corpo que existe a capacidade de paixão (casos de Glória e Clara, respectivamente de Alcateia e Uma Abelha na Chuva) para lá dos códigos sexuais burgueses, sendo por isso vitimadas pelos preconceitos e os enredos senhoriais que directamente não lhes diziam respeito. Finalmente, releva-se o mundo da prostituição provinciana aceite na sua vísivel invisibilidade pelo bom senso burguês, onde a mulher mercantilizada se torna objecto erótico dos prazeres do macho insatisfeito com o amor doméstico. O corpo prostituído é a moeda de troca do “esqueleto da esposa no armário”, ou seja, morta a apetência erótica familiar é com ele que o homem desenvolve a cena imaginária da sua virilidade revitalizada, tal como se regista exemplarmente com o protagonista de Pequenos Burgueses. 

Fragmento de "Do útero indiferente ao erotismo imaginado: as personagens femininas nos romances de Carlos de Oliveira", Nova Síntese - textos e contextos do neo-realismo, n.os 2/3, 2007/08, Campo das Letras.
 
Silvestro Lega - Raparigas ao piano (1867)

4 comentários:

  1. Texto muito bonito e de uma grande sensibilidade.
    Vou divulgar.

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  2. Obrigado, Vítor. Por mais este texto que evoca a condição do feminino nos livros de Carlos de Oliveira. Tema também amplamente tratado por escritores de maiores preocupações sociais. Ainda o maravilhoso das reproduções ( como sempre).

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  3. Poderemos então considerar que Maria dos Prazeres, em Uma Abelha na Chuva, é, de certa forma, atípica no conjunto das personagens femininas de CO, por se apresentar como uma personagem dominadora?

    Domina social e intelectualmente o marido, Álvaro Silvestre, com o qual se parece manter apenas para cumprir convenções sociais.

    Por outro lado, a personagem é assaltada por um complicado sentimento pelo cunhado, um estoira vergas que esta parece ter admirado e desejado com ardor, e pelo cocheiro, com o qual não se envolve por repulsa social. No entanto, este desejo e sexualidade auto-reprimida parece-me bem patente e explorada na obra.

    O desprezo pelo marido e a submissão deste, por se sentir socialmente inferior, e o ciúme e ressentimento pelo amor verdadeiro do par dos serviçais serão porventura o móbil do crime.

    Creio que a raiva surda de Maria dos Prazeres assim como a relação conjugal a coloca fora desta caracterização geral do feminino em CO.

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    1. Caro António,

      O meu post é um fragmento do artigo publicado na revista "Nova Síntese", onde desenvolvo a análise do tema em função de cada romance. De facto, em "Uma Abelha na Chuva", Maria dos Prazeres rompe aparentemente com o paradigma do poder patriarcal e machista, pois o seu capital simbólico (a ascendência aristocrática)coloca-a num patamar superior relativamente à condição burguesa de Álvaro Silvestre. Ambos são, porém, objectos de uma frustração erótica não superável. Maria dos Prazeres está condenada, por isso, a um erotismo imaginado como outras personagens femininas do autor. Se tiver paciência, convido-o a ler o referido artigo.

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