segunda-feira, 19 de março de 2012

O Estado das Coisas: a Ressurreição Etílica de Salazar





“Mas passa pela cabeça de alguém que eu queira vender a ideologia? Eu quero é vender o vinho!”
João Lourenço, Presidente da Câmara de Santa Comba Dão (Público, 17-3-2012)



Salazar já não é apenas o ditador “iluminado” que nos governou, entre 1932 e 1968, agora é (será) também uma marca de vinhos made in Santa Comba Dão. Isto é, um símbolo da nacionalidade, da terra, ou, dito de outro modo, do sangue e do solo lusitanos, com atributos capazes de qualificar hiperbolicamente o néctar de Dioniso: natural, saudável e biológico. A marca Salazar faz vender livros aos milhares, a marca Memórias de Salazar fará vender pastas de dentes, preservativos, louças, canivetes, chouriços, bolas de bilhar, canções de embalar, porta-chaves, relíquias diversas e muitas mesmo muitas garrafas de vinho. Pode parecer estranho, irritar os antifascistas, ou até cair mal no goto de alguns nostálgicos do Estado Novo, mas, para o Presidente da Câmara, trata-se de um mero negócio. Como diria Pessoa, num primoroso achado publicitário, primeiro estranha-se e depois entranha-se. O líquido era outro, mas bem podemos adaptá-lo a este espiritual néctar salazarento.
Face à desertificação do interior, que agora tanto preocupa Cavaco Silva (serão remorsos?), nada melhor do que reinventar um génio nato nesses torrões esquecidos para atrair novas gentes, tal o caso da agora árida Santa Comba. Ora há nomes que morrem depressa, o tempo do trespasse, outros transportam para sempre o peso imorredoiro da História. Pelos maus motivos, diríamos nós, mas gostos não se discutem, argumentaria o insigne autarca, um sábio engenheiro das novas eras. Pois é, a marca é que conta neste mundo de mercadorias, polémicas para quê? Mas a odisseia não acaba aqui, pois o pragmático autarca tem também uma costela espiritual. Para lá do negócio vinícola, está na sua mente com o dinheiro ganho nessas libações de Baco e com mais uns fundos arrecadados pelos devotos de Sua Eminência, o Dinossauro Excelentíssimo, como diria José Cardoso Pires, erguer um Museu para celebrar a memória do ditador.

Claro que neste Museu imaginário não entrarão certamente imagens iconoclastas do campo de concentração do Tarrafal, ou das prisões de Caxias, de Peniche ou do Aljube, onde o inspirado Pastor encerrava as almas transviadas dos deveres pátrios; ou a carantonha grotesca da Censura sempre atenta às palavras subversivas dos escribas vermelhos ou aparentados (rosados ou alaranjados), daí o contraste cromático do lápis azul; ou a proibição dos pobres de pedir nas ruas de Lisboa para não afugentar turistas mais sensíveis; ou as imagens nada abonatórias da cruel guerra colonial durante 13 anos, ou, maldição das maldições, essa subversiva cadeira de lona que o empurraria para a morte na flor da idade dos oitenta anos. Em contrapartida aí figurarão os chinelos de quarto; a caneta com que deu à luz os textos da sua gloriosa oratória; o vaso com alecrim a evocar a sua origem rústica; o seu Livro de Horas; uma fotografia a lembrar a sua saudação fascista; um estilhaço de unha encravada por causa das botas; o chicote com que se fustigava clandestinamente para afugentar os pecados da carne; postais de Fátima autografados pelos pastorinhos; um punhal com o qual trespassou os cromos de Marx e Lénine, emanações de Belzebu; um retrato de Humberto Delgado todo riscado a tinta azul e legendado com a frase “Aos traidores nunca perdoo”; as suas missivas para a Pide, aconselhando astuciosamente, para cada caso, o uso intercalar da cenoura e do bastão; um relatório das centenas de pobrezinhos que sempre caridosamente ajudou; a longa correspondência com o Cardeal Cerejeira e finalmente, entre outros artefactos, o térreo e terno penico que nunca largou em horas de aflição. Enfim, símbolos de um português que sempre soube gloriosamente unir o pragmatismo telúrico e a aspiração indelével aos azulinos destinos celestes.

Velazquez - Os Bêbedos (1628-1629)

Os peregrinos em Santa Comba aí poderão adquirir a preços módicos réplicas das relíquias do maior estadista português de sempre. Será um corrupio imparável das massas em direcção à Santa Terra, para gáudio da boa gente (especialmente comerciantes, hoteleiros e fabricantes de relíquias) do concelho e do seu líder autárquico. É o começo do fim da desertificação deste interior.

Ficará dele a imagem sacral do intrépido político que tão bem soube defender os valores do Ocidente contra o comunismo e as devassas democracias que não souberam entender os seus altos desígnios nesse Portugal que se estendia tão briosamente de Minho a Timor. Entre o devorismo de Sancho e as quimeras de D. Quixote parece assim oscilar a vontade do nosso exemplar autarca, ora fascinado com o cifrão, ora imbuído da nobre missão de resguardar das arestas do tempo a memória de Salazar, o maior obreiro da Pátria.

Claro que esta farsante democracia em que estamos bem contribui para o germinar dos nostálgicos do antigo regime ou para os mais jovens visionarem Salazar como o grande gestor pátrio, o estadista que equilibrou as finanças (o que até está na moda com o nosso Gaspar sob a batuta da Troika), construiu escolas, estádios, tribunais, bairros sociais para os pobrezinhos ou a majestática ponte sobre o Tejo agora chamada de 25 de Abril, uma vil usurpação onomástica. Historiadores para que vos quero? Países pobres e empobrecidos como o nosso não se podem dar ao luxo de pagar a historiadores, sobretudo os que pretendem dedicar-se a historiar o século XX, aqui tão perto das nossas paixões. Vivam os mais jovens com a memória do presente e os mitos do passado que bem lhes chega. E as universidades? Terão também apagado do mapa a brumosa História recente deste recanto para ócio dos reformados nórdicos? O pós-modernismo é que está a dar ou o pós-pósmodernismo, da vaga mais recente. E assim de pós em pós lá vamos cantando e rindo, num arraial de vaidades, pois o fascismo nunca existiu, foi tudo invenção de comunistas, adeptos do mau perder. Serventuários e lacaios do verbo é vê-los de bocas pandas a oficiar de acordo com os gestos do poder nessas televisões, onde se mima em tricas e tricas os convenientes gestos do centrão cada vez mais à direita e “neo-liberal”. E depois há sempre contentores para os esfomeados, esses respigadores dos novos tempos.

Mas quanto ao vinho Salazar, o pior que lhe pode acontecer, é que se a moda pega por essa Europa fora, teremos o vinho Franco, o vinho Pétain, o vinho Mussolini, o vinho Hitler, para não falar dos vinhos da América Latina, onde vários nomes emergem como candidatos de nomeada. Nessa Babilónia etílica ainda haverá então lugar para o Dão Salazar? Dá que pensar, Sr. Autarca!

PS – Não no sentido ritualístico acima visado, teria todo o cabimento a criação de um espaço reservado à exposição do imaginário social do Estado Novo (livros, cartazes, cinematografia, fotografia, etc.), ao mesmo tempo acessível ao público e a investigadores interessados na nossa História Contemporânea. Os mitos dos heróis providenciais encontram na amnésia colectiva o húmus propício para o seu crescimento, sobretudo, tal o caso actual, em períodos de crise. Confrontarmo-nos criticamente com o nosso passado é tanto um modo de nos situarmos no presente, como de nos projectarmos no futuro.

Caravaggio - Baco (1596-1597)

3 comentários:

  1. Quando li esta notícia há uns dias quis escrever sobre ela mas andei a evitar e já sei porquê: não conseguiria ser tão eloquente como merece e como se conseguiu aqui.
    Não estava vivo antes do 25 de Abril e acho fascinante e ao mesmo tempo asqueroso esta saudade do fascismo, em que grande parte dos portugueses sofre do sindroma de mulher batida, querendo voltar para uma figura de autoridade que lhe dá porrada até mais não.

    E aí está o pior de isto tudo. É que realmente haverá bastante gente interessada em comprar o vinho e outros produtos do género. Mas aposto que o vinho saberá mal - a mim já me está a deixar um mau gosto na boca.

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  2. Obrigado Vítor, pelo oportuno e o modo.Lembro-me que nesta apologia " Dionisíaca" Santa Combadense, em que o Sr. João Lourênço, presidente da Edilidade, quer promover vinhos made in Santa Comba Dão e a imagem do Ditador Salazar; embora diga candidamente: « Mas passa pela cabeça de alguém que eu queria vender a ideologia? Eu quero é vender o vinho!» Para lembrar ao senhor algumas sugestões de "Marketing vinícola" ( de uma lista inesgotável , aqui vão algumas sugestões:
    PVDE - 1933 . Vinho rubro, cor de sangue; uvas tintas de cultivo torpe, amadurecidas em cascos de ignomínia.
    Reserva " Viriatos" - 1937 - Vinho transfugado em cascos de ferro e aço, misturado em maturação de cubas falanjistas- fascistas.
    T Deum - 1937 - Com pagela explicativa do ano que o patrono; de vindimador, tinha sido vindima ( acoselha-se como vinho missal).
    Pacto Ibérico - 1939 -Vinho amadurecido em adegas geminadas, pretendendo um grau de embriaguês mais forte e mais controlada.
    Cristine Garnier - Aperitivo de 1950 - Um cordial inventado com serôdias castas, maturadas nas vinhas de D. Maria e apuradas pelo enólogo Ferro.
    E, assim, fica o Senhor Lourênço com vasto alfobre sugestivo para divulgar os vinhos do senhor " Botas".

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  3. Parabens pelo blog "vizinho" adorei os temas e as ilustrações. Cultura não tem que ser algo fechado, monotono, e sensaborão, assim como temas à partida mais superficiais como a moda também têm os seu lado mais filosófico e "heavy-art". Já sou sua seguidora... um abraço.

    Paula Lamares
    http://fashionheroines.blogspot.com

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