quinta-feira, 3 de julho de 2014

As aventuras e desventuras dum cibernauta

Andre de Dienes (1913-1985) - Marilyn Monroe

Há umas duas semanas, antes de um jogo de Portugal para o Mundial, publiquei no Facebook uma fotografia de Andre de Dienes - fotógrafo americano de origem húngara (1913-1985) que se celebrizou pelas suas fotos de Marilyn Monroe, entre outras estrelas cinematográficas, e pelos nus artísticos - com uma jovem nua na praia em ginasticada posição acrobática como quem dá um pontapé no ar. Com pretensão humorística, acrescentei o seguinte comentário: “Com este ponta de lança a nossa equipa seria outra coisa”. Cerca de 10 dias depois recebi uma intimação do Facebook para retirar essa foto, caso contrário o meu acesso seria bloqueado, pois uma alma generosa e protectora dos bons costumes tinha denunciado a natureza obscena de tal imagem.



Andre de Dienes (1913-1985) - Nu (1940)


Convém referir que, numa 1ª fase, o “gestor” e “guardião da pureza” informou-me da queixa e da intenção de analisar previamente a diabólica imagem e assim agir em conformidade. Numa primeira reacção de indignação, publicitei no meu portal a arbitrária ameaça e, para provar a minha “inocência”, republiquei a foto e o respectivo comentário. Para meu espanto (santa ingenuidade!), alguns segundos depois o meu acesso fora bloqueado. Deste modo, fui compelido a retirar imediatamente a imagem “satânica”. Houve mesmo quem me sugerisse que a denúncia dever-se-ia provavelmente mais ao comentário, considerado corrosivo pelo patrioteiro denunciante, mordido pela miserável prestação da equipa nacional do que pelo simbolismo da imagem. Para o caso tanto faz!
Sei que este tipo de interdições, embora aleatoriamente, constitui uma prática dos gestores do Facebook, mas naquele momento senti-me na pele dos acusados da Santa Inquisição, pois era castigado sem a possibilidade de defender a minha posição ou conhecer a identidade do denunciante. Como era comum naqueles malfadados tempos, bastava alguém embirrar com o nariz do parceiro do lado para o denunciar por práticas heréticas. Também durante a nossa ditadura a “bufaria” fazia parte do quotidiano dos cidadãos. Denunciar alguém era para muitos um prazer “mórbido” ou um acto do qual esperavam uma compensação do poder totalitário vigente.



Felice Casorati (1883-1963) - Midday (1923)


Agora temos de novo em cima de nós um Olho Vigilante, sempre que pisamos o risco. O problema está no facto de não sabermos exactamente onde passa esse “risco”, embora, convenhamos, os códigos do Facebook coloquem as razões do falso pudor acima dos valores estéticos. Estamos de novo no reino do absurdo.

Lição: limita-te a publicitar flores, gatinhos e outros animais de estimação, desde que obviamente não sejam predadores, paisagens tipo carta-postal, fotos de ti em jeitos diversos mas com pudor, inocentes aforismos e outros produtos do universo “kitsch”. Desse modo, poderás ter a ilusão de que intervéns neste mundo globalizado, gerido pelos nossos estimáveis “Big Brothers”, sem sobressaltos. Quanto à distinção entre Arte e Pornografia, isso é apenas conversa fiada de pseudo-intelectuais. Aqui deixo, segundo espero, o objecto do meu crime. Espero no entanto a absolvição depois da minha morte! Lastimo perder o meu tempo e o daqueles que tiverem paciência de ler este arrazoado, mas tinha de desabafar. É o que nos resta!


Andre de Dienes - Nu (o objecto do crime)







terça-feira, 27 de maio de 2014

Peripécias dum Velho Eleitor Camponês

Ivan Kramskoi (1837-1887) - Cabeça de um velho camponês (1872)


Acomodado no meu velho sofá, com rasgões que dão para afundar as minhas  memórias, olho para o ecrã da televisão doada por um vizinho benevolente, cuja cegueira recente (cataratas, segundo disse) já não lhe permitia sequer entrar nesse mundo de reais ilusões, imaginadas e fabricadas a preceito, ou seja, com a eficácia necessária para manter a atracção do olhar nesse mundo distante que magicamente se tornara uma espécie de nossa segunda casa. O problema eram as constantes faltas de luz na aldeia, e candeia acesa não ilumina ecrãs.
Algumas imagens e vozes fugazes deram-me então a perceber que proximamente deveria ir votar para as eleições europeias, embora eu da Europa só conhecesse o que as televisões episodicamente me mostravam e eu era capaz de entender, ou aquilo que um companheiro rural, ex-emigrante em França, me contara desses mundos fabulosos, donde segundo percebera tinha vindo dinheiro a rodos para encher a pança dos portugueses, ou, na versão avermelhada, por isso suspeita, de outro velho resistente da aldeia, de alguns portugueses, os privilegiados do costume. Na minha aldeia, último refúgio de reformado viúvo com poucas posses, viviam já apenas 6 habitantes tão enferrujados como eu. O que sabia dos partidos limitava-se à algaraviada televisiva, isto é, um modo de dizer, pois,  homem do Norte, pouco sei dessas expressões sulistas, talvez memórias escolares me suscitem tal expressão. Sabia que havia o Passos e o Portas, o Seguro e os comunas e pouco mais.
Embora com as pernas entorpecidas, tomei nota do dia do voto e decidi cumprir o meu dever cívico, como o meu filho me ensinou a dizer. O problema estava em quem votar, ou ainda pior como poderia chegar ao local de voto,  a uns bons 10 quilómetros de distância. Fiz das tripas coração e aventurei-me à caminhada árdua com a ajuda da sempre amistosa bengala. E pensei que talvez durante o sinuoso (palavra lida no Borda d'Água)  percurso me surgisse a iluminação de uma escolha sensata. Por experiência recente, apenas sabia que o partido do Passos no poleiro me reduzira a parca reforma de feitor, com 70 anos de labuta no campo. Por isso, contrariando o conselho do padre, que mensalmente visitava a aldeia (actualmente nem isso, porque o rebanho era demasiado reduzido para tão longa viagem), decidi secretamente, não fosse o diabo tecê-las, mudar o sentido do meu costumeiro voto laranja.
Mas que teria tudo isto a ver com a Europa? Dizem os do poleiro que nos endividámos com tantos velhos e velhas (sobretudo velhas que teimosamente duram eternidades), calões e estropiados a esmolas do Estado e estradas a perder de vista. e que a santa Europa usurária, palavra douta ouvida a um adepto da oposição, logo se prestou a emprestar o carcanhol. Pouco mais sabia. Mas desta vez, contas feitas, a reforma mal dava para a boroa, ora bolas para os laranjas que assim  me pagavam décadas de fidelidade, pensei com os meus botões coçados. Não pedi conselhos ao meu filho, a viver em Lisboa, pois sabia das suas tendências demasiado comunistóides para meu gosto, efeitos certamente de más companhias, e, além do mais, o meu rendimento não dava para fazer telefonemas a despropósito.
No dia aprazado, cheguei exausto, palavra desnecessária tendo em conta a lonjura e a idade, à vila onde estava recenseado. Pediram-me o bilhete de identidade e deram-me um papel com as siglas dos partidos. Aí começaram as minhas aflições, pois tantos eram os emblemas em presença. Eu bem procurei o rosa, incitado à última hora  por um conterrâneo partidário do Seguro. Mas nada. Seria dos meus olhos turbados? Pensei então em fechar os olhos e atirar a cruz, Deus me perdoe, ao acaso para o bafejado quadrado. Ou então, como em miúdo,  entoar uma cantilena para esvoaçar o voto ao sabor da sorte. Com tanta hesitação, o tempo foi-se prolongando demasiado no "escondidinho" do voto, e não me livrei, pensei eu, da suspeição de sabotagem aos olhos dos senhores da mesa. Nos tempos que correm, nunca se sabe! Atirei às cegas, embora com o risco de acertar no tal Passos que me encolhia o tempo da sobrevivência ou nalgum partido vermelho. Pior a emenda que o soneto! Mas, quando abri os olhos, verifiquei com terror que a cruz estava fora dos quadrados, fora dos quadrados de todos os quadrantes. Com suores frios ou quentes, já nem me lembro, coloquei então velozmente uma cruz em todos os quadrados, não fosse o meu atraso ter terríveis consequências europeias. Dobrei o papel conforme a Lei e coloquei-o na respectiva urna, palavra de mau gosto para tal cerimónia, diga-se em abono da verdade. Lá regressei a casa, mancando cada vez mais, mas feliz porque tinha cumprido o meu dever cívico. A Europa iria certamente agradecer-me pelo acto, só espero ainda estar vivo para receber a justa recompensa.


Ivan Kramskoi (1837-1887) - Retrato de um velho camponês com muleta (1872)




domingo, 6 de abril de 2014

Para não falar de política!

Carel Willink  (1900-83) - Paisagem com Estátua Caída (1942)

De que é feita uma vida? Hoje com setenta anos ainda não sei responder. Cada caso é um caso, diríamos carregados de bom-senso, embora todos estejamos condenados ao mesmo desenlace. Por vezes penso que uma aparente fugaz imagem pode ser o cerne da questão. Uma imagem que de certo nada vale ante as peripécias narradas por uma comunicação social (a famigerada agenda noticiosa) que inexoravelmente ritma os dias do nosso quotidiano: atentados, guerras, especulações bolsistas e outras, naufrágios, bizarrias meteorológicas, pequenas e grandes catástrofes - por vezes tão longínquas, apesar de mediaticamente próximas, que depressa se apagam da memória -, traições e anedotário político, delitos,corrupções e necrologias dos afamados. E, quando os grandes entusiasmos das paixões ideológicas ou outras passaram no tempo curto da nossa história, fica então esta sensação de vazio que nada pode preencher. A voracidade do tempo é desmesurada e na caminhada vão ficando as máscaras destroçadas que nos couberam em sorte ou desnorte.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - O Enigma da Hora (1911)


Depois, quando despojado de tanta ficção, o nosso corpo enrugado continua apenas aberto aos sinais da natureza,  enquanto os sentidos não vão obviamente embotando completamente: rumores, aromas, paisagens, gestos paralisados no tempo. Então descobrimos que a felicidade é uma ficção que os deuses inventaram para nos iludir, seja na terra ou no céu. A vida é um litoral branco, onde podemos imaginar palavras ou imagens que possam dar algum sentido à caminhada. Mas, para lá disso, o que fica é um corpo com as suas necessidades básicas a que por vezes chamamos desejos, desnudado já das pequenas e grandes verdades que motivaram a rota de tantas vidas. As convicções persistem, mas descolaram-se do corpo, como um hábito ou uma rotina já sem a capacidade sequer de sulcar a pele dos nossos dias.


Giorgio de Chirico (1888-1978) - Melancolia de uma Bela Jornada (1913)


E hoje, 6 de Abril de 2014, dia em que escrevo esta sensaboria desconexa e vagamente pessimista, a Primavera aí está com todo o seu esplendor apolíneo. E este lugar-comum que habita as conversas quotidianas, ao sabor dos códigos sociais, se não me euforiza, pelo menos desperta-me agonicamente os sentidos para o voo das árvores, das flores e das aves, entes que nunca tiveram a necessidade de se interrogar sobre o sentido da vida ou da felicidade. Deixemo-nos então esvoaçar aos ritmos das asas deste cenário que não se deixa enredar nas teias da infinita busca de sentido. Hoje é um bom dia para apenas existirmos, se é que dizê-lo tem paradoxalmente algum sentido.  


Giorgio de Chirico (1888-1978) -  A Jornada Ansiosa (1913)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Corpos e Números


Abraham Harriton (1893-1986) - 6th Avenue Unemployement Agengy (1937


O que é preciso é criar quanto antes novas elites […] Não elites que nos subjuguem – mas elites que nos conduzam para a beleza e para a justiça...”

Raul Brandão, Memórias, v. III (ed. Póstuma,1933)


Rudolf  Dischinger (1904-1988) - Ameaça (1935)


Embora numa linguagem datada, esta aspiração brandoniana tem hoje toda a sua pertinência tanto no plano nacional como no europeu. A falência de ideais coloca-nos sob o jugo absoluto do poder financeiro e dos seus servis executores políticos, habilitados com uma retórica contabilística e de endeusamento dos mercados. Mas, paradoxalmente, estes nem sequer fizeram ou fazem do país ao menos uma mercearia bem organizada. A cultura é tratada como luxo parasitário, o supérfluo que apenas alguns pretensos intelectuais se atrevem a defender. O circo mediático cumpre a sua nobre função de aniquilamento do que resta do espírito crítico dos portugueses. Mas há outros luxos a combater, tal o caso do democrático direito à Saúde e à Educação. Tudo em nome da nobre missão dos actuais governantes de salvar o país da bancarrota. Eles têm a bandeira na lapela, um sinal para ocultar a imperativa acção de resguardar os interesses usurários dos nossos credores, nobre cruzada nesta mascarada trágico-cómica de venda de Portugal a retalho. E, numa Europa, feita nau à deriva, de ajustamento em ajustamento, lá vamos disciplinadamente ao fundo.


José Viana Dionísio (1922-2003) - Ordem (1946)

Não são apenas os jovens qualificados a emigrar, mas também gente desesperada com mais de 50 anos. Basta andar na rua para perceber o estado calamitoso a que chegámos: lojas e fábricas fechadas, conversas fortuitas sobre profundas carências, gente desempregada ou explorada até ao tutano que vai desistindo de viver. Corpos dilacerados que os burocratas de serviço não querem ou não sabem contabilizar. Quanto ao redentório “milagre económico” proclamado pelo arguto Pires de Lima, vem o FMI com o seu relatório imperial a proclamar mais austeridade até ao dia do Juízo Final.


Joe Jones (1909-19363) - Descarregadores (1934)

Entretanto, o fascismo, nas suas diversas variantes, vem paulatinamente ocupando em vários países europeus o lugar vazio destas fictícias democracias. O cenário condiz com as palavras, pois, como afirma o douto dirigente do PSD Luís Montenegro, “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor”. O odor fascizante deste comentário não deixa dúvidas. O país já não são as pessoas, mas uma mirífica abstracção ideologizada típica dum poder totalitário. O país é certamente, nesta óptica, um deserto apenas ocupado por números manipulados ao sabor da estratégia desta “elite” simultaneamente apatetada e desumana que nos coube em sorte, ou melhor, em desgraça. Os corpos destroçados deste país terão ainda capacidade para mandar estes bonifrates para o definitivo deserto de onde por lapso dos deuses nunca deveriam ter saído? Cabe a este povo sem rumo reencontrar-se e dar a conveniente resposta.


Dorothea Lange (1895-1965) - White Angel Breadline (A Sopa dos Pobres), S. Francisco, 1933



Dominguez Alvarez (1906-1942) - Enterro Pobre (1929)


Renato Guttuso (1911-1987) - A Morte de um Herói (1953)


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O Regresso às Crónicas e aos Mitos

Gustave Courbet (1819-1877) - Auto-Retrato, O Desesperado (c. 1843-45)

Depois de uma longa ausência, por motivos alheios à minha vontade, retomo com mais rugas da idade e do desalento as despretenciosas crónicas sobre o espectáculo deste mundo. Não me apetece falar de recalibragens nem do despudor retórico destes abutres, os daqui e os da estranja, que nos “governam”, nem da sonolência que parece afectar este e outros povos igualmente desditosos. Talvez porque está tudo dito e redito ou talvez porque me faltem as palavras para me reencontrar com a fúria lúcida necessária nestes dias de cinza. Basta de trovadores da desgraça, embora este mundo esteja amputado de graça, basta de lamentações e outros ecos da perdição. Os bonifrates do poder, numa surdez calculada, repetem os gestos habilmente orientados pelo grande manipulador, actor coberto pela neblina do anonimato. A engrenagem funciona e aparentemente nada a pode deter. Os cenários montados por servis agentes, nos meios de comunicação social, completam a eficácia do sistema, ou seja, a retórica imaginária do poder absoluto. Os mercados, esse sujeito sem contornos e sem alma, um vazio imperativo, ditam o nosso destino. Estamos armadilhados na teia destes símbolos habilmente forjados para nos submeter. Não é sequer uma conspiração dos grandes financeiros para dominar o mundo, pois eles já o dominam. A novidade está nesta estratégia de imposição de uma única visão do mundo como algo natural ou decorrente da genética humana, assente na credibilização da iniquidade através das máscaras da equidade do dito mercado. Chamar ao lobo cordeiro e ao cordeiro lobo. Ou convencer-nos que em cada vítima há um coração de carrasco, em cada carrasco um coração de vítima. A coisificação das relações humanas produz cegueira. É um mundo sem avesso e por isso naturalmente sem horizontes alternativos. Estamos condenados a ser os nossos próprios carcereiros. E aqui está como um cronista bem intencionado, contra sua vontade, se foi transformando num trovador da desgraça.



Paula Rego - O Jardim do Interrogador (2000)


Então eis que, neste patriótico interregno de silêncio e quase apatia, a morte dum homem de seu nome Eusébio – originário de um bairro pobre de negros da então colonial Lourenço Marques e que se tornaria um fabuloso artista da bola, reconhecido mundialmente e por isso manipulável, no quadro da cruzada salazarista, em torno do mítico multirracial ecumenismo lusíada, na década de 60 – vem, em plena crise, reconfigurar a nossa cenografia mitológica. Como afirmou solene Luís Filipe Vieira, “Eusébio já tinha ganho em vida a condição de mito” e a sua morte, digo eu, eleva-o à condição de super-mito, ou seja, numa identificação hiperbolizada “Eusébio é Portugal”, como nota José Mourinho. É então urgente reescrever a Mensagem de Fernando Pessoa, pois, segundo os escribas de serviço, este grande artista da bola teria sido a primeira figura do português global. E o discurso mitológico amplia-se: imortal símbolo de Portugal; Rei-Ídolo ou King, para dar um tom mais universal e eternizado.



Henri Rousseau (1844-1910) - Os jogadores de futebol (1908)


Realmente, para além de Ronaldo, próximo Comendador por iniciativa presidencial, onde encontrar hoje alguém que pudesse preencher o actual vazio de heróis lusos? O Barroso, presidente da Comissão Europeia, palavroso executor dos senhores do nosso destino? O Cavaco destes tempos tormentosos, actor menor para os desafios desta farsa trágica? O Coelho, salvador da pátria, que retoricamente identifica a sua missão de destruir o que resta deste país com o próprio Portugal? O Seguro, o mais inseguro líder do exército “socialista”?
Certamente Eusébio, conforme cruzada em curso, merece a máxima consagração nacional: o seu corpo deverá vir a ocupar um lugar ao lado de outros imortais do Panteão Nacional, aliás bem heterogéneos e tensos, para não dizer pior, nessa coexistência forçada (escritores liberais e democratas como Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, João de Deus ou Aquilino Ribeiro; políticos da 1ª República como Teófilo Braga e Manuel de Arriaga; Sidónio Pais, um precursor da ditadura; Óscar Carmona,um eminente representante do Estado Novo; Humberto Delgado, um digno opositor da ditadura e finalmente a popular fadista Amália Rodrigues).



Dorothea Lange (1895-1965) - Neto de fazendeiro (1939)


Claro que os excessos retóricos ditirâmbicos, repetidos à exaustão nas televisões e na Imprensa, correm o risco de se desgastar prematuramente. Aliás, eles sabem lá o que é um mito ou um símbolo, e assim banalizam o que, na sua óptica, não devia ser banalizado. Sem disso ter consciência, estes discursos consumidos e a consumirem-nos à saciedade tornam-se aceleradamente lugares vazios, a não ser que uma estranha nostalgia bolorenta dos tempos imperiais do chamado Estado Novo os reanimem. De qualquer modo o quase unanimismo perturba-me e assusta-me. Mas sejamos claros, Eusébio merece ser um símbolo do nosso futebol, nas suas virtudes e nos seus defeitos, o problema está em transportarem o símbolo para o domínio da nação. Calem-se as Musas que outro feito se alteia, sussurrará estranhamente Camões nos Campos Elísios. Mas de facto que importância tem altear a bota e desvalorizar a pena neste mundo de computadores? Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!

Porém convém, no meio da algazarra, sobretudo não esquecer o menino negro que pôde realizar o sonho de se tornar numa estrela futebolística. É esse jeito de sonhar que deve ficar como imagem de Eusébio. Os mitos são as ficções dos que vão ficando, por enquanto. Nada mais.